16.4.10

Palavras tabu, ou a hipocrisia dos actos


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Por dentro das palavras encantatórias, das palavras que falam através da escrita. Das palavras surdas no apelo da voz. Quantas vezes há um abismo entre as palavras que encenam a sua própria coreografia numa folha de papel e essas mesmas palavras guardadas no vácuo do silêncio? Logo elas, que deviam ser sussurradas docemente a quem as merece ouvir, ou gritadas de pulmões abertos pelo merecimento de quem as não chega a escutar.
Esboçam-se as palavras que embelezam sentimentos, as palavras que perfumam estados de espírito. Amontoam-se num harmonioso quadro. Tecem-se numa melodia fascinante. O amestrador das palavras está para elas como o domador da serpente enquanto toca a flauta que hipnotiza a sua dança maquinal. Na solidão das palavras que apenas se escrevem, toda a coragem do mundo, o peito aberto e os ouvidos surdos à reprovação de quem as ler. É um acto de isolamento. Do amestrador das palavras e do leitor. Ao que importa ao coreógrafo das palavras: na ausência de si durante a leitura das suas palavras por quem as lê.
Tudo se compõe no libertário acto da escrita. Não há algemas que cerceiam a composição. As ideias procedem na sua espontaneidade. A libertação é sublime porque no refúgio da escrita está o lugar onde todas as palavras, mesmo as proibidas, ou aquelas que provocam o desconforto de quem as lê, todas as palavras trepam as barreiras das proibições. Podem essas palavras conter-se na inércia da voz, a língua travada pelo pudor de as proferir diante de quem as merecia escutar. Por cima das ameias mais altas que fortalezas mentais possam erguer, as palavras que se espraiam numa folha de papel sobrepõem-se ao agrilhoamento interior. Uma pulsão libertária.
As palavras que só falam através da mudez da escrita escondem um envergonhado pudor. São aquelas palavras que se refugiam em tabus. A menos que alguém, estouvado ou provocador, arremeta contra a maré dominante e use as palavras-tabu a contragosto dos demais, aprisionamos a coragem nas intenções que esbarram na hipocrisia. Dizemo-las, essas e outras palavras, através do conforto da escrita anónima, o sacrário do isolamento onde não há lugar à reprovação de quem as escuta, ao seu esgar de transtorno.
E chega-se ao dilema fatal: a escrita libertária, a escrita que compõe as palavras tabu irrompendo contra a báscula implacável do pudor que as silencia, não é acto de coragem. É o perfume indelével da impostura. Essas palavras só são entoadas na mudez do papel onde se desalinham. Não são palavras ditas com o sabor da viva voz. Escondem as dores de parto na impessoalidade de um papel que deixa de ser uma folha branca por causa das desassisadas palavras ali confiscadas.
Há certas palavras, daquelas palavras que em nós se fazem palavras-tabu, que têm pessoas para as escutar. Refugiamo-nos na inércia do silêncio. Ou, talvez pior, só se destapa a coragem, a falaciosa coragem, de as coreografar através da escrita. Somos prisioneiros da palavra escrita e devedores da palavra dita. Neste dilema que sangra por dentro, quem as devia escutar é credor da nossa indulgência e penhor da nossa impostura. E não conta estarmos convencidos que há silêncios que entronizam a cumplicidade, esses silêncios valendo mais do que um milhar de palavras, simples ou arrevesadas, em pose poética ou em forma de prosa. Engolimos essas palavras num silêncio que nos atira para o precipício da insensibilidade. E não, não conta o fermento dessa sensibilidade levedado na poética que se congemina.
As palavras que são tabu: deixam de ser sentidas, ou deixa de fazer sentido desgastá-las de tanto as dizer?

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