13.4.10

O que vale uma contradição?


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E se as formas que parecem tão nítidas contivessem em si o seu contrário? E se nem tudo tivesse as propriedades que julgamos? Há categorias bem definidas, com uma nitidez resplandecente – como se a ninguém fosse permitida a ousadia de contestar o significado dessas categorias que arrumam o universo das coisas em gavetas cheias de organização interna. E, todavia, tropeçamos constantemente na negação da bondade dessas categorias. Do raciocínio circular, sobra a interrogação: serão as categorias tão lineares como as supomos?
Educam-nos – e aprendemos pelo tempo fora – que a indisposição é um mau sintoma de algo. Às vezes, a patologia é imaginada. Outras vezes, a patologia parece fabricada. Um atroz artificialismo. Parece que nos cansamos de “estar bem”. É como se “estar bem” deixasse de fazer sentido. O próprio conceito esvaziado por dentro, esventrado até às entranhas para deixar um nada à mostra. A prolongada exposição à bondade dos elementos retira significado ao bem-estar que seria diagnóstico. Mergulhamos na antítese. É como se a atmosfera se tornasse tão purificada que o prazer desaparecia, o ar asséptico um tédio para os prazeres. Para resgatar a bondade dos elementos, partimos em demanda do seu contrário.
É para isto que vale uma contradição. Avivam-se os laços empoeirados que retomam os lugares contrários da acalmia que se instalara. O corpo desce pelo turbilhão ensurdecedor, a mente tomada pela voragem dos ciclópicos pensamentos em sobressalto. Carência de sentir a cabeça a latejar, as dores de cabeça que parecem perfurar a visão com machados ensanguentados. Há um cansaço imorredoiro em tudo. Ou é antinomia da rotina – de qualquer rotina instalada –, ou somos ancoradouros que atraem estados de alma pungentes.
Convencemo-nos que a calmaria é patologia ao cabo de uns tempos. Nenhum navio de velas soltas avança contra as vagas se não houver ventos a favor. Os marinheiros passam por cima das capacidades quando o vento não está de feição e só a força braçal, pondo as velas a jeito, é que derrota as rajadas que alvoroçam o navio. Quando os ventos param de soprar e a nau estaca a marcha, os marinheiros arrimam à indolência. Precisam de ventos. Não querem sempre ventos a desfavor. Mas há alturas em que afinam a bússola à cata do vento enfastiado que arremete contra a embarcação. O desafio maior de todos: derrotar a monotonia, as sensações que são falazes repositórios de bonomia.
Os marinheiros enamoram-se da rebeldia dos ventos que sopram de frente e que encavalitam as ondas do mar contra a frágil proa do navio. Sentem as entranhas do navio a ranger os dentes de dor a cada tonelada de água que se esmaga contra a couraça. Encharcados em cada milímetro de corpo, inamovíveis diante do cansaço que se condensa nas largas horas de combate ao mar enfurecido, os marinheiros franzem a testa sem saberem se aquela é a viagem derradeira. Sem saberem se conseguem derrotar outra tempestade que despenteia a bonomia em que estiveram sentados dias a fio. Excita-os as dores que os consomem, o risco aviltante (porque faz temer pela sobrevivência), às vezes o sobressalto de saberem que estão no limiar de um muito alto precipício.
Não se demovem. Se há fé que os mantém, é a de desafiarem o fio de prumo. Precisam de experimentar o contrário do que buscam. Pois sabem que o “sentir-se bem” perde conteúdo se não regressarem ao seu oposto. Se calhar, as categorias não se arrumam de maneira tão metódica. A confirmar-se que retomamos as desagradáveis sensações quando mergulhamos numa deriva pungente, é porque encontramos nessa deriva os sedimentos do que nos afiança um bem-estar – um qualquer bem-estar.
Uma contradição é uma contradição de si mesma. Dela não irradiam apenas as desagradáveis tonalidades com que as coisas se pintam. É pelos sentimentos contraditórios que damos alimento aos prazeres que o são apenas porque conhecemos o seu sinal contrário. Se nos cansamos de “sentir bem” e caímos na mortificação interior, é porque saí(re)mos da mortificação interior a saborear o “sentir bem” com outra intensidade. “Sentir mal” não é mal, é um bem necessário. 

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