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O coronel (ou lá o que é) Vasco Lourenço sai da toca uma vez por ano, quando se festeja mais um aniversário da revolução de Abril. Quando abre a boca, costuma arrotar asneira. Desta vez veio proclamar que a democracia ainda não foi cumprida, que talvez estejamos a precisar de um novo vinte e cinco de Abril. Camarada Lourenço: vamos daí, puxa da agenda e marca a data para estarmos todos preparados. Já agora, esclarece os embrutecidos sem a destreza intelectual que te acompanha: qual ver ser o programa de festas? E ao que vens, camarada Lourenço, ao anunciar a urgência de uma nova revolução?
Não sei se será saudosismo do tempo em que carregavam G3 ao ombro. Ou nostalgia de braço dado com a adrenalina que os alvores da terceira idade já reprimem. Ao camarada Lourenço e outros que tais, apetece-lhes brincar às revoluções. A malta está insatisfeita com o andar da democracia. Se lhes perguntassem se isto está muito diferente dos hediondos tempos da ditadura salazarista e pós-salazarista diriam que não, que pouco se notam as diferenças. Todos temos direito à miopia que nos consome a lucidez. Revelá-la em público é um penoso arrastar dos ossos cansados que muito diz acerca da têmpera de quem o faz.
Eu gostava que o camarada Lourenço nos presenteasse com mais um pouco da sua elevada craveira intelectual. Do seu “pensamento”. Por que considera que esta democracia está tão doente que exige nova revolução. E, se possível, o que devia ser feito para extirpar a doença que se apoderou da democracia. Se é daqueles que se indigna contra as manobras do primeiro-ministro e trupe para limitar a liberdade de informação, alguém explique ao camarada Lourenço que o sintoma é de doença mas que andamos longe de ver a democracia ameaçada. Se o camarada Lourenço é daqueles que destila azia de cada vez que há eleições e o povo, o ignorante e ingrato povo, vota demais em partidos “de direita”, é o camarada Lourenço que precisa de uma reciclagem de ideologia democrática.
Ver estes arautos da “verdade”, como chamam a si o papel de tutores do povo – como se ser de “esquerda” (de uma qualquer modalidade de esquerdas) fosse a garantia genética de defender os interesses do povo – faz de mim um tipo de direita. De uma direita qualquer. Desde que não seja de uma destas esquerdas que reivindicam o monopólio da verdade, a imperatividade de determinados categóricos, a perplexidade quando notam que há quem deles discorde. Diante de tamanha persporrência, perante o estado avançado das verdades categóricas e imperativas, nem vale a pena qualquer doutrinação ideológica para ser de direita. De uma direita qualquer. Talvez a revolução com que o camarada Lourenço sonha desaguasse numa semi-democracia (que para ele seria a democracia perfeita). Os partidos de direita, proibidos de existirem e de concorrerem a eleições. Por fim, o povo seria todo de esquerda. Pois não há outro destino possível: a genética manda que o povo seja de esquerda. De uma esquerda qualquer.
A cada um o seu particular significado do vinte e cinco de Abril. No fundo, há inúmeros vinte e cinco de Abris para celebrar. O meu é este: o vinte e seis de Abril que arrumou num túmulo as tentativas para regressarmos a vinte e quatro de Abril pela porta do cavalo e pela janela do lado esquerdo. É o vinte e seis de Abril que dá palco a aberrações como o camarada Lourenço. No anual cortejo de grotescas figuras reumáticas que ostentam o garbo de quem acha que sem elas não haveria democracia, fico dividido nas reacções interiores. Por um lado, fico contente que estas vetustas personagens possam protestar contra a democracia que lhes dá palco. Adianto eu: o regime é tão pouco democrático que se lhes coloca um microfone à lapela para que se possam livrar da diarreia mental uma vez por ano. Por outro lado, os festejos da democracia mereciam melhores intérpretes. Quando se consagra a demissão da ditadura e aparecem estas vetustas (e, até, patuscas) personagens, sinto-me acossado: sinto que esta democracia sofre de envelhecimento precoce.
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