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A tirana dos números, como lhe damos a volta? Os números trazem consigo as algemas da exactidão. Ao contrário, as palavras são um viveiro de subjectividade. As palavras – as mesmas palavras – enfeitam-se em sentidos diferentes através da arte da hermenêutica. Mas um número é um número, sem admitir malabarismos que torçam a sua leitura. Podemos não gostar do que os números nos contam. Conhecemos truque que leve ao desmentido dos números só porque aclaram o que nos é desconfortável?
Fazemos testes de controlo. As contas outra vez. Agora, cuidado redobrado, os olhos esbugalhados de atenção. Pode ser que à primeira tentativa tenha havido uma distracção pelo meio, a contagem traiçoeira dos muitos números que se atropelam no cavalete de onde são lidos e metidos dentro da máquina que faz as incontáveis operações por nós. Por sinal, na repetição os números que aparecem diante dos olhos, os números em jeito de conclusão, são invariáveis. Estará a máquina avariada? Se não estivéssemos à beira da apoplexia porque os números pincelam desagradáveis teses, não seríamos atraiçoados pela dúvida suicida. Fomos educados a não duvidar da perícia das máquinas (outra tirania dos números).
O melhor é pedir outra opinião. Outro par de olhos a inspeccionar os números teimosos. A desconfiança esconde descontentamento. Se fosse desconfiança, era da nossa incúria. Podem-lhe chamar: falta de fair play. Como se tivéssemos entrado num jogo e, arqueados pelo peso da derrota, teimássemos em recusar o desenlace. Ou olhássemos para o médico sentado do outro lado da escrivaninha, naquele consultório frio e impessoal, e desafiássemos o diagnóstico lancinante acreditando na sua ineptidão. Pedimos segunda opinião.
Os outros correm os números na nossa vez. Testam-nos, na sua imensa bondade, piedosos com o sobressalto que nos asfixia o raciocínio. O impasse é de tal ordem que tudo parece ter-se tornado inerte enquanto o segredo não deixasse de o ser. A pior das dores é a que se oculta no manto de ilusões que se ensaia. As alucinações são o engodo em que os números, na sua implacável exactidão, não caem. A pior das dores: dissolve a lucidez. A certa altura, sobeja uma tremenda confusão. O instrumento, o meio para chegar algures, passou a ser objecto de intrigante devoção.
Mas os números são os algozes que apenas admitem a asseada exactidão. São a antítese da mentira. Um inatingível castelo onde apenas repousa a negação da impostura. Denunciam os desonestos que manobram os números quando destilam as cores que sejam antipáticas. Assim que os números entram pelos olhos, já não há retrocesso. Nem que o arrependimento se simule nos erros de método, a reapreciação das contas mudando as regras só na fantasia de os números finais anunciarem o embelezamento de uma teoria que procura alicerces.
Na lógica dos números escorregam todos os que deles não gostam e, sem se conformarem, os querem torcer. Era como se um sete passasse a ter as arredondadas formas de um oito, ou pudéssemos ler no triangular três a opacidade de um zero. É por isto que não gosto de números. Eles são a imagem do céu que atravessa os dias na sua cansativa claridade. Fica tudo à mostra, a imaginação castrada na democrática revelação das coisas. As palavras, ao menos, desmembram-se na multiplicidade de tons que se compõem quando as nuvens derrotam a claridade do céu. As palavras são um archote que ensina mil e um caminhos que se põem à frente dos pés quando estes querem sair do labirinto.
E se aos números é vedada a recontagem – a herética recontagem –, às palavras todos os sentidos são possíveis, na planura das palavras literais ou nas entrelinhas descobertas pelo empenho da paciência. Os números proíbem a recontagem. As palavras compilam as infinitas recontagens.
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