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A histeria nacional hasteada tão alto quanto a bandeira que, mandam os costumes, devemos defender até à morte. É que os “mercados”, essas malévolas entidades, estão a atacar a nossa dívida pública. Gritam quase todos, com o orgulho pátrio ferido: “isto é um ataque à soberania nacional” (essa vaca sagrada).
Por um instante, vou meter os remos na maré que compõe a entretela de mais uma teoria da conspiração. Diz-se, com a garantia das certezas pias, que os especuladores – mastins egoístas que enriquecem com o mal do povo – estão a atacar a nossa frágil dívida pública sem razão. Quase em estado de sítio, esboça-se o “bloco central”, esse miasma. Que banzé! Pouco falta para convencerem a turba que os cães raivosos que especulam e especulam e enriquecem pornograficamente nos estão a empurrar para o abismo. Para se alambazarem com a nossa queda no precipício. Outra vez: admita-se que esta teoria da conspiração não é teoria da conspiração. Não perdoaria os malfadados especuladores de cartola e fato tweed. Sobre eles, este labéu: à sua custa, a pior doença desta terra atiçada outra vez, o bloco central a soerguer-se. E Cavaco a exultar, a sua palavra preferida (“consenso”) em laboração frenética.
A ajudar à missa, depõem muitos sacerdotes de heterogénea origem com doses avantajadas de ofensa pátria e ideológica. Uma grande coligação contra os mercados. O truque para os apoucar é singelo. Os mercados estão loucos. É um ataque ao euro de gente que ainda não digeriu que dezasseis países tivessem escolhido a mesma moeda. É uma injustiça que estes abutres esvoacem sobre a dívida pública lusitana à espera que ela degenere em cadáver. Ouvimos à exaustão: nós não somos a Grécia, nós não somos a Grécia.
Não sei se é por ser liberal (portanto, a genética manda acreditar mais nos mercados do que nos políticos), ou se é por ser ingénuo, mas não embarco nesta tese conspirativa. Exaltamos o sentir pátrio quando nos fazem crer que a vaca sagrada da soberania está quase a ser hipotecada. Ai de quem furar o véu virginal da nossa soberania. Dantes eram exércitos estrangeiros que desciam a Europa para nos invadirem. As modernas invasões são insidiosas, não têm rosto nem rebentam com o estrépito de material bélico. As invasões que doem são as que se alimentam pela vontade dos terríficos especuladores sem rosto que ganham rios de dinheiro com um bluff que verga a espinha de países inteiros.
A ingenuidade que me consome pelas entranhas atira esta perplexidade para o ar: admitamos que não somos (ainda) a Grécia. E não podemos ser a próxima Grécia? Não farejam estes mastins a possibilidade de virmos a ser a próxima Grécia? Outro o prisma: se alguém que não tem onde cair morto nos pedisse um empréstimo, satisfazíamos o pedido sem nos acautelarmos – por exemplo, subindo a taxa de juro para compensar o risco mais elevado?
Quando um corpo está tomado por um vírus debilitante, as células fragilizadas ficam à mercê de outras doenças. As bactérias atacam os organismos fragilizados porque sabem que têm mais hipóteses de vingar. Esta metáfora não sugere que os especuladores são como abutres. Tenho outra leitura para o “ataque dos especuladores”: como o vírus ameaça alastrar a todo o corpo, o risco de doença aumentou. As agencias de rating limitaram-se a mostrar que trazemos cuecas cor-de-rosa, por mais que nos queiramos convencer que são de outra cor.
Está montada a histeria que arregimenta as facções à roda da sacrossanta bandeira das cores nacionais. Há muita gente a desviar os olhos da doença que conta. Só se já estivermos todos naquela barcaça onde de tanto se entoar uma mentira à exaustão, a certa altura ela passa a ter as cores da verdade. Só que umas cuecas cor-de-rosa são cuecas cor-de-rosa. Não nos queiram pôr daltónicos à força.
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