2.4.10

O analfabetismo ainda existe


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Analfabetismo em estado puro. Não daquele analfabetismo funcional que está agora na moda considerar. Pois que somos levados a pensar que os alvores da modernidade erradicaram o analfabetismo em sentido literal. (E já que uso o verbo “erradicar”: há dias, um jornalista escreveu “irradicar” num jornal qualquer. Um jornalista que assim trata a língua traz a cauda presa ao analfabetismo. Talvez mais grosseiro do que o analfabetismo ancorado na falta de estudos.) Agora os provedores da civilidade atiram-se contra a iliteracia. Já nem fazem contas ao analfabetismo em estado puro. Sobretudo nas grandes urbes, onde a renovação de gerações foi sepultando no cemitério os derradeiros exemplares desse analfabetismo. Ou talvez não.
Na farmácia, uma senhora idosa e com voz trémula pediu ajuda ao farmacêutico: “diga-me lá o que está escrito neste papel que eu não sei ler”. A senhora septuagenária, atarracada, com uns óculos tão envelhecidos quanto ela, a bata de dona de casa por cima da roupa encardida, na humildade do seu analfabetismo a mostrá-lo em público. Saí do estabelecimento meio atónito: acreditava nas pregações sociológicas correntes que afirmam, categóricas, que nas grandes cidades o analfabetismo pertence aos lamentáveis tempos idos. Esboçou-se um gesto espontâneo: como a factura estava à mostra, os olhos escorregaram para o amontoado de caracteres que eram a mancha de texto naquele pedaço de papel. Como seria a sensação de não saber ler?
Afinal convivemos com atavismos, vestígios da salazarenta portugalidade que desdenhava da educação e da cultura. Alguns velhinhos e velhinhas septuagenários de fraca condição social, os derradeiros exemplares do analfabetismo que era património genético dessa portugalidade obscura? É quando esbarramos nestes fragmentos que julgávamos ser matéria morta, já só recurso museológico, que os dias se crestam de fétidas cinzas. Para alguém ser analfabeto é sinal de que não chegou a andar na escola. Ou é alguém com fracas capacidades de intelecto que não soube (ou não pôde) aproveitar o que lhe foi ensinado na escola. Ou não aprenderam a ler, ou desaproveitaram o que lhes foi ensinado, com a falta de prática desaprenderam, regrediram.
Tenho a impressão que é mais confortável a última hipótese. É a que serve melhor o apaziguamento colectivo, sobretudo daqueles meirinhos da modernidade que convivem mal com os traços atávicos que demoram a desprender-se da bainha do que somos. A septuagenária que entrara na farmácia e que pediu para lhe decifrarem o significado das letras apinhadas num papel, não se intimidou em expor o seu analfabetismo. Foi um acto tão natural como pedir um medicamento.
Talvez nós também sejamos um bocado analfabetos. Se por analfabetismo (mas nem o funcional, nem aquele que o é no sentido literal) se considerar as revelações que de supetão esbarram nas convicções formadas, em cada um de nós há algum analfabetismo por ignorância da realidade atávica que nos cerca. O estigma da mulher que não sabia ler ficou a pesar no horizonte. Eu quis imaginar como seria não saber ler. Para uma idosa como aquela, que no bilhete de identidade, no local destinado à assinatura, vem a menção não honrosa de que “não sabe ler”, será indiferente. A sua labuta diária arregimenta outras preocupações. Para nós, os que sabemos ler e julgamos que o analfabetismo se evaporou com os últimos títeres da ruralidade mergulhados na escuridão da agnosia, não saber ler é tão letal como a privação de oxigénio. Ou como, de repente, a cegueira apoderar-se de nós.
Ainda pensava, umas horas depois, na septuagenária analfabeta. Dava voltas e mais voltas, não por causa da perplexidade de ainda haver na grande urbe quem não saiba ler, mas pela angústia do que imagino ser a sensação de não saber ler. Lembrei-me da desorientação que tomava conta quando, em Sofia, estava diante de palavras em cirílico sem que na linha de baixo houvesse a tradução para o alfabeto que aprendi. Uns fragmentos do que é ser analfabeto.

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