20.4.10

Saltimbancos de água


In http://publico.pt/
Da mais pura inveja. Aquela coreografia de corpos juvenis que se entregam a piruetas antes de desaparecerem na água. Não é difícil ver nos saltimbancos destemidos o alheamento de tudo, apenas a entrega nos lúdicos afazeres em que se entretêm. Daí a mais pura inveja. Por nada os pôr em sobressalto. Não sabem, não querem saber, que há jornais que se incendeiam todos os dias com as notícias pungentes oferecidas pelo mundo em andamento constante. Ou, também se podia assim compor, das notícias miseráveis que incendeiam o mundo, tornando-o ainda mais insuportável.
Aqueles adolescentes apenas se querem refrescar e treinar as circenses piruetas que alimentam a adrenalina. Não são estouvados. Passam horas nisto, um mergulho atrás do outro, umas braçadas na água tépida até porem os pés nas hastes de madeira que fazem as vezes de trampolins. Rivalizam, os rapazes, no mergulho mais demente. Experimentam toda a espécie de mergulhos, desde os que já outros inventaram para eles aos que eles próprios se gabam de serem inventores. Não lhes diz nada a voragem das crises que consomem bem-estar, ou as diatribes de políticos que se fazem passar por muito respeitáveis personagens, ou a excitação dos espectadores em arenas desportivas, ou coisas tão banais, e porém para eles tão irrelevantes, como a justiça, ou a ética, ou a decência, ou, a pior de todas, a razão.
Os cinco rapazes ensaiam uma coreografia que se intui sincronizada. À voz de comando de um deles – o que se faz por passar por maestro – saltam ao mesmo tempo para lugares contrários, em saltos desconexos. Não é uma sinfonia harmoniosa. Um grupo de gente ajuramentada nos caprichos da modalidade ditaria a avaliação medíocre do salto, com todos os cânones em desacerto na libertária exibição dos cinco rapazes. E, todavia, se há salto que merecia levar a palma nas olimpíadas da atonia era este. Uns saltando de frente para a água, outros de costas, alguns com braços estendidos, outros com o tronco dobrado sobre si, uns devorando a adrenalina de olhos abertos, outros com temor cerrando os olhos. Sem haver um único rapaz a repetir o salto do outro. Combinados para serem o retrato da diferença num gesto tão banal. Cinco diferenças uns dos outros.
A luz embaciada, porventura o belveder onde os olhos contemplam o dia no seu ocaso, é o pano de fundo para o tresloucado folguedo dos rapazes. À sua maneira, a consagração de um dia que foi só deles, como se não houvesse mais ninguém que importasse existir. Em fértil exaustão do corpo infatigável, o corpo que não se cansava do banho nas águas tépidas. A noite haveria de vir, ainda antes das sombras que escondem as formas dos corpos cederem o passo à penumbra na sua plenitude. Os rapazes ali, afogueados por um cansaço que não cansa, sem as ilusões de um mundo que não deixa de andar para trás.
À noite, os rapazes meteram-se por dentro do sonho dos mergulhos encenados em assíncronas coreografias. O seu Olimpo era o maior de todos: eram os estetas do hedonismo, os radares todos desligados, a bússola avariada que não deixava discernir os pontos cardeais. Naquela penumbra que deixava à mostra apenas os contornos dos corpos, habitava toda a essência do que importa. Os corpos esquálidos, tisnados pelo sol impiedoso, por eles escorrendo as gotas que embalsamavam a felicidade mais pura.
Se calhar, pelo meio da noite, quando ela já se fazia alta na madrugada silenciosa, encontrávamos os rapazes no interminável bailado dos mergulhos cabriolas. Sem se assustarem com a noite escura, ou as tempestades tropicais que desarranjavam os elementos com ventos e chuvas num pé de dança enfurecido. Apenas sobravam os mergulhos numa embriaguez de contentamento puro.  

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