5.4.10

Já não somos super-homens


In http://www.duva-pollensa.com/fotos/ok/hidroterapia.jpg
O corpo que se enferruja. Engrenagens que empancam. A velhice a espreitar ao dobrar da esquina? E, se em vez de perguntar, o ponto de interrogação desse lugar a uma afirmação?
Queremos resistir aos sedimentos da idade. Julgamos que ainda podemos rivalizar com os corpos que, na vivacidade das suas faculdades, esperneiam boa forma. Fazemos o que na juventude pura julgávamos desinteressante – pois nessa altura as prioridades eram outras e a perda de faculdades físicas era uma ainda distante miragem. À medida que a miragem perdia os predicados de ilusão e os dedos tocavam a espessura do primeiro enrugamento das carnes, passámos a cuidar do corpo, a cultivar o exercício. O estigma do envelhecimento derrotara o sedentarismo de outrora.
Por vezes damos conta, em retrospectiva, do descompasso com o ritmo das idades que já tivemos. Quando as faculdades estavam intactas, quando, na lógica do aproveitamento das capacidades do corpo, o podíamos ter cultivado, desprezámos a possibilidade. Agora que as primeiras partículas do envelhecimento deixam um testemunho presencial – algumas rugas, uns cabelos grisalhos que se salpicam aqui e ali, enfim, os primeiros achaques do corpo – devolvemos o arrependimento à superfície. E a nostalgia também.
O arrependimento de não termos sabido (ou não termos querido, o que talvez seja mais revelador) cuidar do corpo a tempo. A fobia de agora parece uma corrida contra o tempo. Como se, por um passe de magia, fôssemos de encontro ao Olimpo onde apenas os mais jovens, e de prodigiosas capacidades, conseguem vencer. Como se ainda fôssemos a tempo de ser Adónis (e o que interessa ser Adónis?). Teimamos em cuidar o corpo para uma juventude que, pelo interior do corpo, já o não é. Ou, dir-se-ia, teimamos em treinar o corpo para um juventude a destempo.
O que nos traz à nostalgia: cada quilómetro palmilhado em perseverante correria, cada abdominal flectido para dissolver as inestéticas gorduras que dão volume à pança, até cada movimento dos braços carregando pesos – um santuário de ilusões sobre a não eterna juventude, a juventude que se gastou nos vestígios que sobram no livro das memórias. Não sabemos: se o vício do exercício é culto extemporâneo do corpo; ou uma terapêutica preventiva, o segredo para adiar o envelhecimento do corpo. Um truque para empurrar a decadência do corpo lá mais para a frente.
No meio desta azáfama, esquecemos de espreitar o bilhete de identidade. Caímos na dependência do exercício; já não chega a manutenção do corpo. Os vícios atiram as metas para um limiar superior. A certa altura, viciamo-nos na superação das pessoais capacidades. Uma modesta modalidade do ideal olímpico – “mais forte, mais longe, mais alto”. Só que o irremediável bilhete de identidade monta uma cabala contra os esforços de superação do corpo. Por mais que o corpo se desafie a si mesmo (em rigor, que os meandros da mente exijam que o corpo se supere), o peso dos anos desmente as prodigiosas faculdades físicas que o corpo, iludido pela mente, acha que ainda possui. Pagam-se os exageros (se é que há exageros) com avarias do corpo. Indelével manifestação dos sedimentos do tempo. Nem que fôssemos super-homens teríamos faculdades pós-adolescentes no corpo onde já entraram quatro décadas. Talvez seja este o erro de julgamento: nunca fomos super-homens. A ousadia paga-se com um corpo em desarranjos interiores. E com as dores, as insuportáveis dores da agora inércia forçada. 
E assim vim parar às termas. Pela primeira vez na vida. Não é que tenham prescrito um receituário de águas termais para as maleitas específicas. Não passou de uma coincidência. Diria, uma coincidência sintomática.
(Em Mondariz, Espanha)

Sem comentários: