15.4.10

EN1


In http://www.prof2000.pt/users/avcultur/Aveidistrito/Boletim31/Imagens/page61a.jpg
Depois de um opíparo almoço perto do Mondego, hora de abalar de Coimbra. Havia um pedaço de tempo por ocupar se metesse pela auto-estrada e demorasse nem uma hora a chegar a casa. E se deixasse o sossego veloz da auto-estrada e metesse uma cunha às recordações, só para resgatar do baú das ditas a pouco saudosa “nacional um”?
Seria o retrato de um regresso ao passado por dentro do presente. Ou uma digressão às sobras do terceiro mundo que ainda há em nós. O carro ao caminho. Em velocidade aceitável e sem trânsito, os primeiros quilómetros. Começava a ficar surpreendido. E desconfiado. Ouvi e li relatos do pesadelo em que esta estrada se tornara, uma espécie de arruamento constante entre as muitas localidades atravessadas pela “nacional um” – as localidades entretanto expandidas ao longo da estrada, canibalizando-a.
Só foram dez minutos de estranho sossego e de velocidade inesperada. Depois aterraram os pesadelos que as palavras sábias já vieram descrever. Uma profusão de rotundas, semáforos para quem vem das estradas secundárias ganhar prioridade na entrada da “nacional um”, ou semáforos que se acendem mal o velocímetro pisa os cinquenta e um quilómetros por hora. Muitos camiões afugentados das auto-estradas pela exorbitância das portagens (contenção de custos oblige – ou a versão rodoviária do “isto é a crise”). Numerosos restaurantes de beira de estrada, desde os que ainda conservam o charme anacrónico, aos que regurgitam a ostentação de novo-riquismo, ao “Restaurante Zé”, simplesmente Zé, escondido nos arrabaldes da estrada, num plano inferior, sintomaticamente num plano inferior. Às vezes, quando o arvoredo denso quase coloniza as bermas da estrada, umas mulheres roliças e pouco vestidas aliciavam clientela com a sua pose sugestiva. À minha frente, um camião parou de repente, sem aviso, as hormonas do condutor excitadas pelo além prometido pela meretriz de borda de estrada que fazia paragem naquele marco quilométrico.
Na EN1 tudo acontece devagar. Os camiões arrastam o seu peso, delongam-se num passo de caracol que prolonga a fila de carros atrás. Não sei se exagero: para além dos inumeráveis semáforos e rotundas espalhados pela “nacional um” fora, são mais os pedaços de estrada marcados com traços contínuos do que as zonas de livre ultrapassagem. Os quilómetros escorrem, com lentidão. A distância que nunca mais passa encarniça a impaciência. Na EN1 os ponteiros do relógio andam atrasados, como se neles se condensasse um empoeirado retrato de antanho, de quando a estrada era rainha para quem se quisesse pôr de Porto a Lisboa. Ainda sou do tempo em que os curtos pedaços de auto-estrada iam de Lisboa a Vila Franca de Xira e depois só dos Carvalhos ao Porto. Um punhado de quilómetros que deixavam nos viajantes uma saudade do futuro que são os dias que hoje vivemos, nesta terra prolixa em auto-estradas. Um sítio de exageros, é o que somos.
Fartei-me da jornada pela datada “nacional um” quando cheguei a Oliveira de Azeméis. Já viajava há mais tempo do tempo que me leva a percorrer a veloz auto-estrada de Coimbra ao Porto. E como a impaciência recrudescia a cada quilometro exasperadamente lento por causa de mais uma rotunda, ou de um semáforo no meio de uma localidade que acantona a EN1 numa apertada congosta, ou de um camião TIR com certeza em excesso de carga a arrastar penosamente os rodados, fugi da EN1 quando uma placa, num azul vivaço, prometia a auto-estrada meia dúzia de quilómetros adiante.
Há quem se aventure na antiquada “nacional um” para poupar os tostões da portagem que os concessionários das auto-estradas cobram. Eu gostava de ter a mesma paciência de chinês e menos desamor ao dinheiro. E não sei se a patologia que me consome se confirma – a de sentir apenas saudades do futuro que está por vir.

1 comentário:

Milu disse...

Também me lembro de na minha adolescência percorrer aquele troço de auto-estrada de Vila Franca de Xira a Lisboa e, até, de ao observar principalmente numa das suas margens, todos aqueles prédios de imensos apartamentos de cujas janelas à noite se escoavam focos de luz, que me faziam deter em pensamentos em profusas interrogações: o que se passaria por detrás daquelas janelas, que géneros de vida, que dramas humanos?