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Entrelaçados os dedos, um furor desabrido irrompia pelas veias, incendiando todos os poros do corpo. Os olhares que se metiam pelos olhos dentro valiam mais do que mil palavras. O êxtase carnal, onde os delírios se ornamentavam, era o altar mais elevado da combustão dos corpos. Cada centímetro de pele era um mapa já tacteado de olhos fechados. Os amantes gritavam através do silêncio dos tempos. Esse grito era o amplexo do vocabulário que só lhes pertencia, no castelo privativo de onde ecoava uma harmonia que derramava cobiça em redor. Era como se o encantamento chegasse para os alimentar.
Os corpos perfeitamente conhecidos: talvez a impossibilidade do conhecimento do resto esbarrasse nesse dilúvio. E como o conhecimento do resto importava! Quiseram edificar uma cumplicidade que só se esboçara em planos idílicos, a cumplicidade nunca materializada. O castelo privativo tinha alicerces de papel, uma fragilidade súbita. As pedras apodrecidas caíam, deixavam à mostra as fendas que o tempo ocultara. As pedras desgastadas não conseguiram resistir à fragilidade dos alicerces. O que dantes não separara os amantes fervia pelas entranhas num insuportável coro desafinado que cantava uma ode à desarmonia. E já nem o estremecimento dos corpos chegava para escorar os frágeis alicerces.
Já não era como dantes. O encantamento perdido. As palavras ditas de sentido esgotado. Era como se elas, ao serem ditas, só tivessem a forma das letras que as compõem; se as abrissem, lá dentro as palavras estavam ocas. Os olhares já não coincidam. Quando os dedos se entrelaçavam, os corpos não se encontravam com o estremecimento de outrora. E se os corpos continuavam a pedir água, ainda e sempre num frémito selvagem que nobilitava a função, já tudo se resumia a isso. Parecia muito, mas era muito pouco. Reduzira-se a quase nada.
Pelo chão da casa era como se só houvesse folhas outonais que se desprendem das árvores em véspera de hibernação. Um sinal de decadência em levitação constante. Os pés pisavam aquelas folhas caducas e nem sentiam saudade dos tempos em que as mãos entrelaçadas magicamente fabricavam as flores mais perfumadas do mundo. Agora as mãos tocavam-se e só conseguiam sentir a pele enregelada. Quando se deitavam nos cabelos e regressavam ao nariz em demanda do perfume de outrora, sobravam apenas uns dedos inodoros. E nem as carícias tardias, como se fossem o derradeiro frémito para os amantes se resgatarem do plano inclinado, traziam a sede que dantes lhes pedia água.
A impossibilidade dos sentimentos revolvia-se num sobressalto. Irremediável. Já não era um simples rumor que esvoaçava sobre as cabeças dos amantes, ou interrogações intimidadas com a segurança do que eles julgaram serem certezas. Os murmúrios foram ciciando a sua voz, cada vez mais audível, um ruído que consumia a quietude interior. Até esses sussurros serem o grito constante que desatou as incógnitas que, enfim, não se reprimiam à boca de cena. Era a vez das folhas frondosas, já sem a água que fora seu nutriente, amarelecerem e perderem-se no chão frio. Quando os pés se depararam com o chão inteiro de folhas ressequidas, e os olhos espreitaram sobre o dorso os ramos desnudados da árvore, tudo deixara de fazer sentido.
E o luto, o luto foi um breviário.