14.9.10

O couraçado


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Espúrios heroísmos. A arcada toda petrificada, um mastodonte que ampara as intempéries todas. Com a mesma insensibilidade que troveja medo sobre as vicissitudes que pairam, tão temíveis. Não há ondas alterosas que abram cicatrizes naquela parede densa. Não há vendavais que mexam as telhas, um milímetro que seja. Não mostra comoções, as lágrimas arredias como chuva no meio de um deserto ávido de água.
E teima e teima em mostrar as suas muralhas de aço. As cortinas também são de aço. Como os nervos. Tudo é feito em aço, matéria inexpugnável, um bazar onde se acomodam as insondáveis emoções invisíveis aos olhos alheios. Ancoradouro onde outras lágrimas se vêem verter. Veste a mortalha dos duros para enxugar as lágrimas dos outros. Como se fosse o lugar onde se amontoa o ferro-velho, o que já ninguém quer, as inutilidades que se apinham em caótica ordenação. Julga-se à medida de um generoso regaço onde repousam variadas espécies de inditosos. Esse regaço, um bálsamo que alivia infortúnios. Mas há uma transferência das desgraças. Elas são depuradas debaixo da mortalha de aço, reduzidas ao seu insignificante pó. 
E, todavia, as emoções volteiam-se num frémito explosivo por dentro das veias. As emoções próprias e o restolho das emoções alheias que ali chegam para terapêutica liquidação. Irrompem em direcção à superfície, onde a mortalha as reprime. Voltam a descer, a sedimentar-se na profundeza das entranhas. É lá a sua casa, transidas pela manipulação asfixiante. Nota-se que o chão oscila, quase imperceptível, ao passar dos pés. Um dia, e outro, e outros mais. O que provoca estranheza. Julgara-se que aqueles alicerces, sólidos como engenharia alguma pudera conceber, fossem o arpão da máxima estabilidade. Mas o chão tremia. Dir-se-ia que só instrumentos de precisão conseguiam medir os movimentos telúricos. Mas eles sentiam-se. Levantavam dúvidas. Seria o couraçado o couraçado que se fizera notar?
Um dia, como se fosse um vulcão a despertar da sua agonia, as águas recalcadas no leito pantanoso entraram em ebulição. Ao início, só um suave borbulhar acompanhado de vapores que sinalizavam o aquecimento das águas. De repente, parecia que o chão das águas era um mar revolto, um manto que subia e descia com furiosa intensidade. Houvera uma ruptura, uma minúscula ruptura, por onde entrara um intruso que desmanchara a lividez do couraçado. Como crescia a paradoxal fragilidade do majestoso amontoado metálico! De um momento para o outro, os rebites despertavam-se, prenunciando a fatal fragilidade do mastodonte.
À deriva, errando à mercê dos tempestuosos ventos que sopravam de todos os lados da rosa-dos-ventos, metia água pelo porão, pelas escotilhas, era às pazadas a água já não forasteira que arremetia pelo convés. O que outrora ninguém ousara desconfiar era agora uma excruciante interrogação: o couraçado não era indestrutível? Teve as emoções bem resguardadas por detrás da epiderme grossa e (julgava-se) impenetrável. Quando ficou ao deus dará, até uma casquinha de noz parecia mais sólida do que o errático couraçado. O pior, é que estava longe da costa, entregue aos caprichos de uma impetuosa tempestade em alto mar. As forças, já exangues, não ajudavam a contrariar a imoderada tormenta. Sentia que o fundo do mar o tragava com uma agónica lentidão.
Arrependera-se, naqueles instantes fatais, da teimosa heroicidade que se auto-impusera. De que lhe valera? Só a efemeridade do regaço para as desgraças amputadas por depuração. E quem lhe valia na desdita, agora que uma enxurrada de água desordenada tinha esbarrado, e com tanto fragor, no metálico casco que parecia feito de papel vegetal?

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