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Quem é pirómano de si mesmo? Quem se autoflagela com a cerzidura incandescente da lava que escorrega, imparável? Ao alto e a baixo, teme-se pela demência (a pior das doenças) que se possa abater. E, no entanto, às vezes somos frugais no acarinhamento das fortunas que aterram à porta.
No vasto campo de flores que se prometia diante dos olhos, solta-se das mãos uma fagulha letal. Não é por distracção, nem por acto involuntário. Será falta de lucidez, ou os corredores interiores cansados de habitar num lugar imponente. As chamas tomam conta do campo de flores, uma a uma consumidas. Das flores já não se liberta o perfume inebriante, inigualável, pujante – um perfume que emprestava todas as cores à existência. A lenta consumição das flores deixa no ar a podridão de tudo e cinzas que são a morte esvoaçante. As faíscas deitam-se nos bolbos. Que resistem até onde podem. Oferecem a sua vitalidade, esgrimem a humidade interior para repelir as dantescas labaredas. A certa altura, a fragilidade toma conta de tudo. Os bolbos, o derradeiro bastião, inclinam-se à impiedade do incêndio que tudo consome com uma lentidão exasperante.
O pirómano não sai do lugar. Não é um voyeur altaneiro das suas cínicas acções. Fica embebido em gasolina, inerte no meio do campo de flores. Sem se amedrontar, na mais grotesca das exibições de demência lúcida. Olha em redor e vê o lento aproximar das chamas. Que, numa impressionante simetria, o cercam por todos os lados. Nem o ar putrefacto que se levanta, e tudo o que esse odor diz acerca da incandescência interior, desautoriza a inércia. Loucamente, possui-se de um veemência inusitada. Se pudesse, não derrotava a inércia; se ao menos se conseguisse desprender das férreas algemas que o amordaçam ao cepo bem no meio do campo de flores, tirava fogo de isqueiros e tochas para apressar a combustão.
O ar intoxicante contamina a lucidez. É como se estivesse embriagado, os sentidos todos trocados, a análise obscurecida pela mente trespassada. As primeiras cinzas caem sobre o rosto como se fossem a chuva que os índios cozinham nas suas mezinhas. Aquela chuva caridosa que limpa a alma pelas entranhas e remove todas as cáusticas poeiras que eram sedimento do tempo. Num lampejo de argúcia, apruma uma derradeira interrogação: aquele belo campo de flores prestes a desaparecer merecia ser extinto?
O pirómano de si mesmo acredita no contraponto da lucidez tardia. Acredita. Que se incensa num processo indolor. E que as suas cinzas, aleatoriamente derramadas por onde calhar, terão pousio diferente. Já não lhe interessa adivinhar se será pousio melhor ou pousio pior. Os vários sítios onde as cinzas se reinventarem serão isso mesmo, novos campos de flores à espera de serem cultivados com a diligência que merecem. Os ventos tratarão de amansar a fúria dos elementos. E, quando sobrarem apenas as cinzas incandescentes, no restolho do incêndio que ficou com as forças exangues, a centelha há-de estar algures nas intimidadas cinzas que teimam em manter-se acordadas.
O fogo posto será uma terapêutica do tamanho do mundo. E esta confirmação: onde parece que há demência estão os vestígios da reinvenção. Nem que sejam ténues, uma frágil faúlha que a todo o momento se promete inanimado fogo fátuo. Quando for apenas cinza sem a luminescência escondida da chama sem pavio, estará completada a metamorfose.
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