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Aquela fábula do sapo e do escorpião: um embuste pegado. Só dei conta depois de ter narrado a história de adormecer à minha filha (que meteu umas adaptações pelo meio).
Para quem não conhece a fábula: o traiçoeiro escorpião convence um sapo ingénuo a ser seu meio de transporte até à margem contrária através do rio. Consegue vencer a desconfiança do sapo, que, timorato, sabia da fama do escorpião. Talvez o medonho escorpião tivesse predicados hipnóticas. Só assim se entende que o sapo tenha ido na armadilha de oferecer o dorso para a outra margem. Ou o sapo, imerso numa imensa bondade, fazendo finca-pé à maldade genética do escorpião, acreditara nas boas intenções do farisaico bicho com o mortal veneno nas garras. À boleia do sapo, já quase com a outra margem à mão de semear, o escorpião não resistiu aos instintos sibilados desde a profundeza das entranhas. Espetou uma ferroada junto ao pescoço do sapo. O veneno letal demorou apenas uns segundos a fazer efeito. Consumido pelas dores lancinantes, o sapo afogou-se no rio. Levando com ele o escorpião que não sabia nadar.
No epílogo da história percebi o erro da escolha. A minha filha mostrava um esgar de choro, a sua inocência a chorar piedade pelo sapo que fora no engodo do escorpião desleal. Expliquei-lhe que a fábula encerrava uma lição (só não lhe disse que era uma lição de moral porque não a quero enganar precocemente com o impostura da moralidade). Era uma lição sobre a confiança. E sobre a importância de sabermos honrar a confiança que alguém em nós deposita. O escorpião assinava o papel do mau da fita, o poltrão imaginário que, por cima de toda a maldade irremediável, afogava a sua vida no meio dessa maldade que o levou, pela mão da ignorância, até à própria morte. Como podia ele não saber resistir aos seus instintos e aferroar mortalmente o sapo que nele confiara, se aquela mordedura era, ao mesmo tempo, a sua própria sentença de morte? Era a outra lição: quando atraiçoamos a confiança mostramos a nossa própria indignidade.
Isto de contar histórias a crianças para lhes trazer sono é uma ingrata tarefa. Ao ir pelos passos do socialmente convencionado somos atirados para o lodaçal da moralidade, da ética que perfuma as regras de uma saudável convivência entre as pessoas. Ora, eu tenho uma irresistível desconfiança desta moralidade e destas regras. Soa-me tudo a fingimento. Quantas vezes os seus maiores sacerdotes são os que, na escuridão do oculto, cometem os maiores atentados à retórica tão perfeita de que se acham zeladores? E a moralidade, supostamente um património colectivo, não devia ser um imperativo vertido só para dentro da personalidade de cada um?
A fábula do sapo e do escorpião é uma patranha completa. Haverá sapo tão ingénuo a confiar que um escorpião que lhe saltasse para o dorso seria capaz de resistir aos seus instintos? Haverá sapo algum que aceitasse dar boleia ao escorpião e, ao fazê-lo, assim encontrasse a sua derradeira viagem? E o escorpião: haverá algum, demente ao ponto de não reprimir os instintos mortais, espetando o hospedeiro sapo com o veneno letal – o veneno que, afinal, faria o escorpião vítima de si próprio?
Se estas fábulas que vêm das profundezas do imaginário popular têm alguma serventia, é a seguinte: elas não passam disso mesmo, do imaginário de um povo fantasista, um imaginário que perde todo o contacto com o pragmatismo. Talvez a única serventia seja a de vacinar as criancinhas contra a maldade genética da espécie humana. Fermentando um instinto de desconfiança. Eu digo que estas fábulas são o prelúdio para uma existência niilista.
3 comentários:
As histórias para crianças, pelo menos aquelas de antigamente, são tudo menos inocentes, na minha maneira de ver são pouco apropriadas para crianças. Quando li sobre a reacção da sua filha, que se afligiu com o brutal e, sobretudo, injusto destino do sapo, lembrei-me de mim quando criança. Naqueles tempos, andava eu na escola primária, costumava deslocar-me à biblioteca de onde trazia quaisquer livros, muitos deles de leitura apropriada a idades mais avançadas. Por norma, eram as catequistas que se encontravam no local para atender as requisições, e que de livros só conheciam a Bíblia e mesmo esses conhecimentos seriam muito, mas mesmo muito rudimentares. O curioso é que eu costumava afligir-me ao ponto das lágrimas me virem aos olhos, quando lia algumas das histórias que são consideradas ideais para as crianças, enquanto com outros livros, supostamente para adultos, logo com assuntos menos inocentes nunca isso me aconteceu. Há qualquer coisa de muito mau nas histórias infantis, não sei definir o quê, mas talvez a constatação de que uma criança pouco pode fazer perante o poder e a manha dos adultos. Lembro-me especialmente de uma história de uma bruxa, cuja casa era no seu exterior forrada a bolos, daqueles que me abriam muito o apetite, mas que tinham a finalidade de atrair as crianças, para que a bruxa as prendesse e comesse depois de as engordar. Quanta angústia me provocava ler esta história! Afinal esta aparentemente inocente história, apoiava-se na terrível superioridade do adulto em relação à criança. Era uma história demasiado verosímil, por isso violenta, exceptuando a bruxa, tudo o resto era possível de acontecer. Até a história da Gata Borralheira tem que se lhe diga, não fossem as fadas madrinhas e ainda hoje a Gata Borralheira transitava pela casa toda ela cheia de fuligem. O triste é que na vida real não existem fadas madrinhas, e qualquer inocente pode ser uma vítima da maldade de que o ser humano é capaz, domínio no qual nem o diabo nos supera.
Há por aí muitos sapos e ainda mais escorpiões. Crer mudar este estado de coisas parece-me uma utopia. Um abraço.
Milu, todos os contos de criança por mais medonhos e tenebrosos que sejam, têm o seu quê de moral. É para isso que eles existem... Isso de adourar a pílula para que as crianças não tenham pesadelos, parece-me a primeira razão para os encaminhar para o psicólogo. Fiquei perplexo qunado soube que hoje em dia a história do "Capuchiho Vermelho" já não tem o final que sempre lhe conheci... É triste saber que uma sociedade não sabe aceitar os seus própios de feitos e que até o Lucky Luke tem que deixar de fumar na versão actual ao invés do original. Talvez seja melhor o bardo do Asterix cantar exemplarmente bem e o Óbelix não descarregar nos desgraçados dos legionários romanos, e assim podemos dar os contos/BD aos nossos filhos. Abraço
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