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A suprema maldade: puxar lustro à erudição só para desencantar palavras raras que são sinónimos de outras palavras já gastas. Dizem-me: serve para apoucar gente amiga da agnosia (lá vai uma, do avesso). Apanham com o restolho das ofensas que irrompem engalanadas com palavras jamais ouvidas. Como o que por aí sobra é preguiça, o dicionário continua com as folhas fechadas, não vá a poeira sedimentada levantar-se num incomodativo arfar.
Podes, por exemplo, chamar mitómano a alguém. Não te esqueças de compor o tom de voz. Evita a voz agressiva, ou a outra pessoa desconfia do sentido da palavra que, por orgulho, não ousa interrogar-te acerca do seu significado. Que isto é sublime ironia, dirigir as desagradáveis palavras com uma amigável entoação de voz, se possível com um sorriso nos lábios, embrulhando o ultraje num venenoso papel de cordialidade. Dizem-me: que não há maior recompensa para o deleite interior.
O outro há-de suspeitar que um mitómano é um homem que adora mitos. Isto empurra para a filosofia – que o interlocutor tem uma vaga recordação de ter andado a estudar na escola a inutilidade do mito na disciplina de filosofia. Vai puxar os galões. Afinal não é o brutamontes, o prócere da escassez de massa cinzenta. Ali à frente, alguém esboça um simpático elogio às suas, por ele, desconhecidas capacidades intelectuais. Mas é tudo no seu contrário. Mitómano – é a palavra vestida do avesso, porque a entoação sugere um caleidoscópio agradável. Tresler o significado de mitómano é a grotesca exibição do apedeutismo que o abocanha (eis outra palavra vestida do avesso: apedeutismo).
E, no entanto, pôr um vestido diferente numa palavra não há-de ser manifestação de sabedoria. Será sobranceria, ostentação intelectual, hipocrisia, maldade. Os eruditos, talvez por pensarem que têm punhos de renda e se acovardam quando alguém lhes mostra um punho fechado, desviam-se das estradas por onde passeia a franqueza. Escondem-se detrás das palavras travestidas – as palavras que sofisticam outras de sentido vulgar, deixando os interlocutores esmagados pela falta de conhecimento. Se estes não quiserem dar parte de fraco (o maldito orgulho que agiganta a necedade – e vai mais outra do avesso), ou se a preguiça repudiar a consulta de um dicionário, destapa-se o pior dos dois mundos. A ofensa, a insuportável ofensa, acovardada no véu da erudição sobranceira.
Um dia destes li um comentador a acusar o primeiro-ministro de ser mitómano. E, ou muito desconfio, ou sua excelência, com a consabida escassez de tempo para se debruçar sobre minudências, não perguntou ao dicionário o que ele mandava dizer sobre a palavra. Um pressuroso conselheiro terá arriscado a função, deitando sua excelência numa depressão de quem se adoenta quando alguém, tão narcísico, se sente aviltado? Ou nenhum membro do séquito terá explicado o sentido da palavra, para evitar as más disposições que indispõem qualquer um? Sua excelência terá metido a cabeça ao travesseiro convencido que mitómano é elogio. E não me admirava que o admitisse mesmo que chegasse a travar conhecimento com o significado de mitómano.
De outras vezes, é a fonética que atraiçoa o sentido das palavras atamancadas numa frase. Palavras com sons parecidos – mas apenas com essa parecença, que tanto diferem no significado. Um dia destes, já não sei a que propósito (tenho que me resguardar...), usei a palavra “lascívia” numa sala de aula. Juro que conduzia o discurso por metáforas para reforçar o entendimento dos alunos; não era esbulho de nada. Fizeram um esgar de estranheza. Umas horas mais tarde, ao reentrar mentalmente naquele episódio, suspeitei que a audiência tinha confundido, pela semelhança fonética, “lascívia” com “lixívia”.
Ah, as traiçoeiras palavras, que se adulteram quando trazem a roupa do avesso.
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