1.9.10

Anti-star


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Indigesta, a convivência com elogios. Desconfortável, a popularidade. Uma agressão, a ideia de perder o anonimato (aqui como antónimo de popularidade). Impossível, a hipótese de andar na rua em pleno reconhecimento facial aos olhos dos outros. Dos maiores bens que pode haver no mundo é a total irrelevância individual. Só assim a intimidade do ser é preservada. E a intimidade é tão importante nos pequenos gestos, nos pequenos, grandes nadas, como andar na rua sem ser conhecido, ou não ter nada de relevante para oferecer à sociedade.
Pelo contrário, há quem se ponha em bicos de pés para aparecer sob os holofotes mais cintilantes. Uma tremenda urgência em porem as suas vidas a nu perante os olhos coscuvilheiros de quem consome estas futilidades travestidas de informação. Contudo, os maiores voyeurs são os que se prestam à coscuvilhice alheia. São os que abrem todas as portas e janelas da pessoalidade à meticulosa, doentia inspecção dos outros. Gostam de ser espiolhados. Foram educados a espiar pelos buracos da fechadura para saberem como são as existências alheias.
Não, a discrição já não é a maré que conta. Aos que encerram as portas e janelas da pessoalidade aos vasculhadores da existência dos outros só falta lapidação pública quando deles é reclamada esta transparência que se confunde com ser-se alcoviteiro. Os piores são aqueles que fazem gala em ser “notícia” todos os dias, umas vezes pelos motivos mais bizarros, outras vezes por insignificâncias que aviltam quem, do lado da imprensa, as transforma em informação no que é o abastardamento da informação. Esses que gostam de andar nas bocas do mundo, que alimentam o imaginário das existências alheias tão pequeninas que se preferem debruçar sobre os mitos da popularidade, e que depois exigem respeito pela sua intimidade. É a estrela do futebol com uma vida pessoal a duzentos e vinte à hora, as figuras do jet set que adoram esparramar as férias algarvias nas revistas da especialidade, a menina da televisão que colecciona cinco namorados por ano. Para eles, uma metáfora: o dilema da chuva sem andar protegido por um guarda-chuva.
O que se impõe é ser diferente de tudo isto, desta futilidade impressionante, desta forma de ser que vira as entranhas do avesso para serem grotescamente mostradas a uma turba sedenta – como se toda a turba vivesse por dentro da vida das “figuras públicas”. Hoje é difícil ser discreto. Quando se é, corre-se o risco de carregar o rótulo anti-social, uma espécie ríspida de bicho do mato que ofende os costumes dominantes por querer reservar a sua intimidade. É como se a própria palavra intimidade fosse redefinida, o seu sentido habitual alterado para ser substituído, qual lâmpada fundida, por um novo significado. A intimidade passa a ser a negação do que aprendemos. Sobressai um clamor popular para descerrar os panos escuros que escondem a intimidade. A transparência, uma máscara que alimenta a onzenice, derrotou a imunidade da privacidade.
Esta orgia, em que um exército de alcoviteiros dá a sua perninha, é o palco para teimar no oposto do que está popularizado. Não que o género mereça elogio, mas o melhor método é ser “soviético” – fechar a existência numa redoma hermeticamente selada à curiosidade alheia. O truque para o sossego da existência, recordo-o no ascetismo de Herberto Helder: o poeta recusa entrevistas, recusa ser fotografado, não admite que o seu rosto seja espiolhado pelos olhos alheios que se espraiem por um qualquer meio que o torne público.
Mas depois uma interrogação assalta a certeza assim fixada: pode tal reserva de intimidade conciliar-se com a exposição que se revela em textos ora autobiográficos, ora não (os primeiros em minoria, ainda assim)?

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