29.10.10

A bebedeira necessária


In http://www.becolanches.com.br/docs/fck/image/vinho_taca.jpg
Dizem que os grandes escritores são amigos da bebida. Que andam sempre enamorados por uma garrafa que contenha líquidos com elevado teor alcoólico. Dizem que os grandes escritores encontraram momentos ímpares de inspiração quando estavam acompanhados do álcool, apanhados por tremendas bebedeiras. Defendem esta teoria: o estado ébrio é bom conselheiro das artes e das letras.
Ora isto talvez explique que este arremedo de escritor não consiga sair da cepa torta. Estive cinco anos sem meter um grama de bebidas alcoólicas no sangue. Neste tempo todo fui mandado parar pela polícia três vezes e, das três vezes, soprei ao balão. Oxalá todas as certezas que queremos que nos acompanhem fossem tão seguras como a que tive daquelas três vezes. Podia lá ser que o balão acusasse vestígios de álcool se há tanto tempo a bebida não me visitava.
Pelo caminho, terão ficado perdidas no éter páginas de brilhante escrita – a crer na teoria que ajuramenta a inspiração divina proporcionada pelos sentidos turvados por uma qualquer bebida alcoólica ingerida em doses cavalares. Mas posso estar errado no diagnóstico. O mais certo é ser um projecto de escritor, com as ambições até agora sempre reprimidas a deixar para a posteridade uns textos num quase anónimo blogue. (Sim, nunca me desprendi do pudor de propor o que quer que fosse a uma editora.) Será pudor, será receio de ver a proposta de publicação recusada (as dores na auto-estima são das dores mais pungentes). Ou, na hipótese mais auto-indulgente, a consciência das limitações da escrita de quem andou tantos anos afastado da tentação alcoólica. Se não bebia, como podia ambicionar a ser bom escritor?
Já tive um passado de excessos com a bebida. Algumas bebedeiras, esparsas mas descomunais. À memória sobe uma rural passagem de ano. Ainda não era meia noite e já andava desorientado, tais as doses de bebida que tinha ingerido. Dei comigo agarrado a umas folhas de papel, a caneta maquinalmente a debitar uns esboços de poema. Tinha a impressão que eram estrofes desarticuladas, a caligrafia a arrastar-se pela mão trémula numa sucessão de hieróglifos ininteligíveis. Derrotado pela visão turvada e pelo cansaço, a meia noite dessa passagem de ano foi testemunhada pelo sono em que entretanto caíra.
Sem me lembrar de o ter feito, guardei os papeis onde escrevinhara os esboços de qualquer coisa que seria poética se fizesse sentido. Dias mais tarde descobri os papeis encostados ao canto de uma gaveta. Não posso ser fiador da teoria que associa inspiração literária ao consumo alarve de bebidas alcoólicas. Não a posso caucionar através daquele devaneio literário embebido no ébrio estado em que me encontrava. A caligrafia caótica nem sequer deixou perceber as palavras atabalhoadas que verti nos papeis amarrotados.
Podia repetir a experiência. Assim como assim, já pus de parte a teimosia da abstinência da bebida. Podia, um dia destes, enfrascar quantidades industriais das bebidas que aparecessem pela frente. Sentado à frente do computador – já não como outrora, no tempo das cavernas, em que ainda não usávamos computadores pessoais – deixaria fluir a inspiração com a impressão digital da embriaguez. No dia a seguir, entre as tremendas cefaleias e as náuseas, voltaria a essas palavras (se a pós-ebriedade conseguisse descobrir onde tinham sido gravados os textos). Talvez para me convencer do escritor falhado que havia derramado as nem pelo álcool inspiradas palavras.

28.10.10

Yes, you can


In http://comunidade.sol.pt/photos/tordesilhas/images/317146/original.aspx
Montanhas escarpadas. Tão inclinadas que convidam à resignação. Nos vales, rios voluptuosos, assustadoramente vertiginosos. Com as águas a tropeçarem em si mesmas, em golpes desassisados que denunciam a demência de quem as atravessar. Ou um deserto monótono, agreste, com as areias tórridas a tisnarem a pele por mais que ela se proteja. E há as contrariedades fumigadas pelas pessoas em redor. As palavras que nunca deviam ter sido ditas. Como se fossem alimento envenenado, o cianeto contido nas palavras que jamais se perdem no armário onde estão guardadas. As memórias.
Podem as adversidades jogar-se todas ao mesmo tempo. Como se os arquitectos que têm os lápis do destino na mão compusessem vários infortúnios que se entoam ao mesmo tempo. O corpo desanima. Arqueia-se sobre si mesmo, a renúncia a prometer-se, desleal. Apetece fugir. Apetece um longo sono em demanda dos sonhos que sejam a mera ilusão de um refúgio. As cores perdem significado, todas liquidadas na monocromia que se afivela em múltiplas tonalidades de cinzento. Tudo perde sabor. E a coreografia dos odores é uma dança estática, os bailarinos estáticos em cima do palco já com as luzes apagadas. Os dedos tacteiam as coisas e só lhes fala a insensibilidade.
O desalento sai à boca de cena através de uma fonte envenenada. Todos os passos são um sussurro insuportavelmente ruidoso, os pés desmaiados pelas insistentes pedras pontiagudas. A subida à montanha escarpada é uma canseira que se não pode imaginar. As forças, já exangues, estão no limiar de um fatal precipício. Sobressalta-se o coração acelerado com os medonhos penhascos que se acercam do estreito caminho que sobe pela montanha. Às vezes, os pés têm que se compor num equilíbrio circense, quando o quase imperceptível caminho se estreita tanto que mal o corpo cabe. Se o vento soprasse com uma fúria rebelde, o corpo abdicava do equilíbrio. E o precipício mesmo ali.
Mas não podes arquear o corpo diante das contrariedades. De que serve a pose sofrida senão para arrebanhar a compaixão que tanto te incomoda? As adversidades, todas somadas, davam para encher sete mares. E depois? São os queixumes que as resolvem, como se aparecesse um Aladino a insinuar as curas? E de nada serve continuares empenhado em resgatar da anterioridade do tempo as releituras desse passado. Páginas dobradas não podem ser tiradas à sua pose estática. Tosses com o pó amarelecido de cada vez que teimosamente resgatas páginas bafientas, cheias de poeira.  
Só há um segredo: faz como os forcados que passeiam a valentia nas arenas. Aos contratempos, olha-os com a frontalidade de uns olhos bem abertos. Com os teus olhos em pose desafiante. Não há revés que não tenha remédio. Podem demorar os remédios a actuar. Pior: pode tardar a demanda do bálsamo. E quanto mais tempo o corpo se entregar ao pesar, enquanto andar aos trambolhões entre as quatro paredes e as mágoas forem a maior consumição, nem sequer te é dado a encontrar o fármaco que cura as contrariedades que tanto entristecem. Se embuçares as nuvens que se acastelam, podes estar certo que o sol não há-de romper entre a densa camada de nuvens. Tu és o arrumador das nuvens.
Às vezes, a resignação incomoda o discernimento. Entre o desarrumo das ideias, parece que a lucidez se confunde com renúncia. Eis o maior desafio pela frente: derrota essa letargia que ardilosamente se instala, essa letargia que te consome, que te faz ser o que não és. E até é aceitável que desconfies da capacidade para saíres vitorioso dessa demanda. Interioriza: tu podes. E tu consegues. 

27.10.10

“Cidade italiana quer proibir minissaias e decotes exuberantes”


In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjOF1-vGhBwACpKllTTaIBu7OyxOZQ5T2wx8UFRiFfLc1IPLeB6zzRS5INgEo1UZMnSeWcgT1BVaR_PfKP7HBGXP0PF1IazRI21KA4X-15q3p6-go1PJLVpO3ceryz_86OqHKdL/s400/tempo+medir.jpg
Castellamare di Stabia. Tenho que fixar o nome desta localidade e não aparecer por lá. Senão, só terei direito a apreciar mulheres vestidas com saias sempre abaixo do joelho e com decotes cingidos ao pescoço. Talvez não fosse má ideia instituir uma burka mais civilizada. Para os torturadores das liberdades, este dress code é uma orgia de contentamento.
Podia encarar esta bizarra ideia pela perspectiva egoísta de um proto-marialva que se encanta com a leveza de uma mulher sem preconceitos, de uma mulher que faz esvoaçar a beleza na ligeireza do vestuário que traz à rua. Podia-me entristecer, eu que sou um lídimo apreciador do sexo feminino, caso fosse habitante de Castellamare di Stabia. Pelo horizonte sombrio que me prometia o autarca com esta lei anacrónica. Ele há minissaias, umas escandalosamente curtas, outras discretas mas insinuadoras, que deixarão de acompanhar as mulheres quando saírem à rua. E decotes “exuberantes” – delicioso pormenor, não sei se da notícia ou directamente da fonte – doravante fechados na abundância de pano a tapar os seios, majestosos ou apenas à medida da mão, forçados a um exílio tristonho.
Podia continuar com as lamentações varonis que são sinal de tristeza pela asfixia dos sentidos. Mas o que mais interessa é a ignorância do autarca que atropela sem pesares a liberdade de expressão das mulheres que se quiserem vestir com minissaias e decotes exuberantes e o que mais lhes apetecer. Uma pessoa comunica com as outras também na forma como se veste. E mesmo que o não queira fazer deliberadamente, mesmo que queira apenas exibir um estado de espírito pondo no corpo uma determinada vestimenta, a sua liberdade é hipotecada por uma lei tão impensável como esta.
Os habituais carrascos das liberdades dirão que uma liberdade deve ser restringida quando invade a liberdade dos outros. Não vejo como aqui se aplica o preceito. Serão as senhoras mais idosas que temem que os consortes troquem os olhos ao ver passar no adro da igreja uma mulher viçosa a exibir as quentes coxas desnudadas e os seios que descaem, ardilosos, para cima de um vergonhoso decote? Ou os homens muito tementes a deus, aqueles que tiveram uma educação castradora e que herdaram uma sexualidade reprimida, a esconjurarem as tentações do demo na forma de vestuário feminino reduzido?
O mais encantador é imaginar a polícia municipal a patrulhar o cumprimento da nova lei. Daqui em diante, os agentes da autoridade terão que envergar fita métrica ao lado das pistolas. Suponho que a lei vai definir as medidas aceitáveis. Uma minissaia é legal se estiver no máximo quantos centímetros acima do joelho? E em que condições passam os decotes a ser “exuberantes”? Terá a lei definido a esquadria aceitável de um decote? Já agora, terá a lei proibido o uso de calças com cós descaído, pois deixam à mostra a lingerie quando elas se baixam para apanhar algo que caiu ao chão? E terá proibido cuecas de fio dental? E calças discretamente translúcidas, calças que revelam as formas tentadoras da lingerie que se insinua? E o absurdo: os homens que decidirem envergar minissaias escandalosas também se põem a jeito da multa que vai de 25 a 500 euros?
É só adivinhar o cenário: polícias zelosos interpelando senhoras que ousaram fazer orelhas moucas à nova lei da decência. Ali, em plena rua, o agente da autoridade a ajoelhar-se diante da senhora, medindo a distância que vai do joelho à extremidade da minissaia. Para ver se tira o bloco de multas. Ou se, entretanto, fica excitado com os deliciosos poros de pele morena onde se deitou a fita métrica e os seus dedos, inadvertidamente, tocaram.

26.10.10

Ponto final, parágrafo


In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi6sv6s4PvNoyR9xTX0dTORBTryJLpWLYhgycto1njiQW8WmSxjnXBiPYNH6HS7hVWdFu42QzRAB1KLLdXi6MAEz83vf6_iAQF7EjZNSkmqWw7AQKm1648I0fW_ggJeeEcuyfWRiQ/s1600/ponto_final.jpg
Pontos finais falazes. Parecem pontos finais. Vistos à lupa, descobre-se uma perna que desfaz a redondeza do ponto. Ele deixa de ser final e entrega-se à metamorfose da vírgula. Outras vezes, a adulteração do ponto final é mais sofisticada. Pontos e vírgulas, um compasso de espera para interiorizar as palavras que ficaram atrás. A sede de uma reflexão, sem que a água abundante derive para as palavras que vêm de frente, refreadas pela barragem que é o ponto e vírgula. Ou o ponto final que declina diante de dois pontos: uma ponte, perseverante, impede a travagem. É a ponte que se estende para as palavras que aparecem depois, a emulsão de um remoto ânimo que se descerra, por infrutífero que pareça.
A recusa do ponto final sinaliza a não definitividade das coisas. É como se a mão, ainda trémula pelo entorpecimento das emoções, se recusasse a arredondar o sinal. Ela guardava as escondidas ilusões, o fermento de uma qualquer vírgula, ou ponto e vírgula, ou dois pontos, a retardar a aposição do ponto final. As esperanças avivam-se quando o ponto final sucumbe. Ou agoniam quando a mão é incapaz de colocar senão o ponto final.
Doutras vezes, nem o ponto final liquida um tímido feixe de luz que espreita por uma reentrância descuidadamente esbulhada. O ponto final é uma parede que cerceia a frase. Como se estivesse a avisar que o que estava a ser dito, com a aparência de ser terminante, era afinal transitório. Enquanto a frase se não quebrar num fatal parágrafo, o assunto continua a medrar. Arrasta-se, num interminável parágrafo que exaure a paciência. Podem alguns pensar que as frases que se completam umas às outras no interminável parágrafo são a paciente formulação da lucidez que combate o ostensivo despejo das emoções. Que o parágrafo, fosse ali colocado, era extemporâneo. Que fora cedo para lacrar as palavras com um selo concludente.
Não há textos corridos, porém. Todas as histórias se deslaçam entre si, o deslaçamento embebido nos parágrafos decisivos. As mãos podem lutar pelo prolongamento das frases; podem converter pontos finais noutra pontuação que não as liquida, como se importasse manter uma porta entreaberta. Mas tudo isso resume-se a uma ilusão tremenda. Acredita-se que as frases não chegam a ser interrompidas. Parecem agressores da boa escrita, um atabalhoado aglomerado de palavras em frases que se estendem por linhas e linhas sem fim. A certa altura, depois de recuar uma e outra vez para retomar o fio condutor, a frase esgota-se na sua ininteligibilidade. E nem as palavras, as palavras em si, fazem sentido.
E então, com a frieza da noite a esmagar-se nos ossos e o vento gélido a povoar as lágrimas que se derramam, só se escuta o clamor do parágrafo. Proclama-se, com solenidade e alguma tristeza (até), um ponto final. É o derradeiro ponto que condescende com o moribundo parágrafo. As palavras que ainda estivessem por dizer caíam num precipício. Já não havia espaço para as acolher. Apenas o vazio que sobra à frente da linha desocupada, onde já não cabem palavras algumas.
O precipício é uma renovação inteira. As palavras – as palavras diferentes – são recriadas no novo parágrafo. O precipício que cerceou o demorado parágrafo antecessor é a transigência ambicionada. O parágrafo novo, a renovação de tudo.

25.10.10

Flores


In http://api.ning.com/files/*HJiLiDCKRWIEgEr6gprtZcOxBasCANREW2LbNZtmXNsVM0I525sodl*zQMpkXn9a7twj-ax4OimiGMK6exMk9Y*iOhJEJnR/flores.jpg
Atiro flores. Às pessoas que passam. Aos rostos sorridentes, aos rostos que exalam toda a bondade que soa tão ingénua neste mundo que nos ensinam ser de uma perfídia atroz. Atiro as flores aos ingénuos que vivem imersos num invejável sossego interior. Das flores abundantes que trago ao regaço vou tirando um punhado para elogiar essas pessoas tão belas que são uma lição inteira.
E também atiro flores aos carrancudos, aos mal dispostos, aos desconfiados. Aos que carregam uma assombrosa frieza disfarçada em extroversão que é isso mesmo, disfarce. Atiro-as à gente macerada pelas contrariedades do passado, às pessoas que fazem gala do trato rude. Atiro uma singela flor aos pulhas que andam por aqui e por ali exibindo a sua soberba; pode ser que o perfume delicioso das flores tenha neles o efeito do encantador de serpentes que com a sua flauta as consegue hipnotizar. E não sei se hei-de atirar mais flores aos que merecem ou aos que talvez fossem merecedores de as não ter.
Atirem-me flores. Também preciso de flores. De um caleidoscópio de flores, abundantes, de uma policromia intensa, um bouquet de flores com formas tão diferentes. Flores com aroma, flores inodoras. Flores viçosas e outras que sem água depressa se derrotam no seu ocaso. Às vezes sinto que preciso de uma banheira cheia de flores onde fossem depuradas todas as impurezas que liquidam a lucidez. Ou um interminável campo de flores onde o corpo se perdesse, onde lá não pudesse ser encontrado quando houvesse demanda dele.
As flores sussurram ao ouvido os segredos da bondade. As flores entoam melodias quentes, que ciciam as avenidas frondosas onde as árvores exóticas se entronizam e flores múltiplas engalanam canteiros exuberantes. Detenho-me vagarosamente em cada canteiro e retrato mentalmente a coreografia de flores. Registo na memória do olfacto a irresistência dos perfumes atamancados no cardápio de flores. Era uma avenida a que se não via o fim. Sem polícias que não repreendessem pelo furto das flores, das flores que aprouvessem no momento. As pessoas que passavam pareciam indiferentes ao encantamento das flores. Anestesiadas pela sobressaltada vida que levam, empenhadas na pressa que subtrai o significado das coisas.
Se ao menos soubessem que o segredo está nas flores em redor, nas flores que lhes eram indiferentes, talvez dessem conta do equívoco em que teimam. As façanhas, quaisquer que sejam, são efémeras. Consomem-se no instante em que os dedos julgam que as enclausuraram. O que não lhes é dado a perceber é que assim que são emolduradas entre os dedos logo entram em decadência. Às glórias passadas só lhes é conhecida uma função: são o leito da nostalgia sem sentido, um altar de vãos narcisismos.
As flores, ao contrário, são o arquivo onde se ensinam os segredos da vida intensa. Quem traz flores ao regaço, as flores dispostas em oferendas a quem passar, não está preso às raízes do tempo passado. Através das flores que traz derrota as memórias ingratas, derrota os inúteis arrependimentos. Há generosidade, pois há. Uma pulsão interior que empurra o corpo a caminhar por avenidas desconhecidas, até por avenidas que julgara nunca percorrer. Pois as flores ao regaço são de uma magia surpreendente. Transformativas. Essas flores, e as outras que virão a seguir, ungem a existência com uns olhos que transportam em si uma ternura perene. Uns olhos que querem ser o repositório de toda a bondade.
As flores são professoras. Ensinam que desaproveitar a existência, ou torná-la maçadora, é indigno. Suicidário.

22.10.10

Coronel assassino vestia lingerie de mulher


In http://www.lux.iol.pt/internacionais/coronel-assassino-mulher-lingerie-video-insolito/1201309-4997.html
Pintara as unhas dos pés de vermelho puta. Aprendera, em vídeos para aspirantes a cabeleireiros, a aperaltar os pelos das sobrancelhas. Rapara todos os pelos do corpo. E, porém, continuava a envergar o corpanzil másculo, senhor de uma musculatura imponente nos antípodas da feminilidade. Por dentro seria mulher. Por fora, a angústia de carregar o corpo e as hormonas erradas, masculinas. Revoltado, vingara-se nas mulheres que pudera vitimar. O coronel tinha um secreto cadastro de violações encadeadas com assassinatos de mulheres.
O coronel de severa educação militar, treinado para a rígida disciplina mental, sentia um terrível espartilho a amordaçá-lo. Era seu um corpo estranho, o corpo em destempero com os tortuosos corredores da mente. A mortalha da severidade militar era a derradeira gota de água que o faria transbordar as estribeiras.
Eu não sei se o coronel fantasiava com outros fetiches de transformismo. Tomámos conhecimento de uma fotografia em que o coronel aparece vestido com uma lingerie feminina de cor acinzentada. Estranhamente, não exibia um esgar malandro, não espreitava para o espelho pelo canto dos olhos, insinuando uma lascívia que desatasse pensamentos lúbricos em quem fosse excitado espectador da fotografia. Trazia um rosto fechado, angustiado. Nem ao trajar a ambicionada lingerie feminina se libertava das imensas consumições interiores.
Andaria em bicos de pés pela casa depois de pintar as unhas dos pés com verniz vermelho puta? Dormia com uma reduzida, sensual camisa de noite? Ensaiava festas em que era o único convidado, dançando em frente do espelho com um cesto de frutas à cabeça em perfeita imitação de Cármen Miranda? Maneava-se escandalosamente quando saía nu da casa de banho para a cozinha, antes de pegar no secador para ensaiar o enésimo penteado na cabeleira postiça que punha depois de debruar os lábios a batôn roxo?
A casa era o refúgio para a esquizofrenia reprimida do coronel. Era lá que se libertava da insuportável pressão da vida normal que os colegas do quartel imaginavam ser a sua. Chegava a casa e o corpo explodia, apetecia-lhe rasgar a austera farda militar, queimá-la entre os despojos da masculinidade arrependida. Só aproveitava as divisas e as comendas que enfeitavam o fardamento que usava nas cerimónias solenes. Queria resgatá-las das fardas já reduzidas a um amontoado de trapos rasgados, com elas enfeitar a peça de lingerie roubada à última vítima. A peça de lingerie branco pérola ornamentada com os sinais da elevada patente militar para homenagear o covarde feito.
Às vezes, no auge do sobressalto interior que o acossava, ia ao coldre algures largado na alcatifa da sala e tirava a pistola. Acariciava-a, como se fosse um objecto sexual. Demorava-se na estranha contemplação da bestialidade da arma. Repetia o acto de travar e destravar o revólver. Passava o dedo pelo gatilho, ousava premir o gatilho até ao fim para ouvir o ruído seco da câmara interior onde não estava bala alguma. Punha lá dentro uma bala e repetia o exercício, agora com a pistola apontada à cabeça. Lembrava-se de um filme de há mais de vinte anos (“O caçador”) em que prisioneiros americanos no Vietname eram obrigados a jogar à roleta russa para divertimento dos seus algozes. Um desejo irreprimível de imitar o jogo tomava conta de tudo.
Por maior que fosse a angústia que o mortificava, era maior a covardia que impedia que o dedo trémulo premisse o gatilho. Ficava ali minutos sem fim com a arma apontada à fronte enquanto as lágrimas se vertiam, abundantes, pelo rosto. Até um tremendo cansaço tomar conta dele e se deitar nos braços do sono, à espera que os sonhos a seguir fossem um filme com as coisas na sua compostura desejada.

21.10.10

Vinte e um filhos e noventa netos


In http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/7/7c/Solomon_Burke.jpg
Quando a estrela do soul, Solomon Burke, morreu, deixaram escrito no seu epitáfio mediático uma façanha que suplantava as proezas artísticas: vinte e um filhos e noventa netos. Eu digo como isto é assustador. Uma prole tão numerosa é uma singularidade nestes dias. Se Burke fosse de cá, logo diríamos que era membro devoto da Opus Dei. Não sei se será o caso (porque do epitáfio não constava o cadastro religioso do senhor), mas talvez o músico fosse evangélico, pois os evangélicos são muito atreitos à disseminação da prole. Como bons operários de deus, é-lhes cometida a incumbência da prolificar a espécie.
Uma das perplexidades contemporâneas é o problema demográfico, sobretudo nos países ricos (pois nos países pobres e noutros muito populosos o problema ainda é a elevada natalidade). Estes países envelhecem à cadência conjugada do aumento da esperança de vida e da diminuição dos nascimentos. É a maldita tecnologia que ajuda a medicina que por sua vez prolonga a vida das pessoas. Por outro lado, temos talvez o hedonismo que impacienta as pessoas para a reprodução da descendência. Ou as pessoas com a corda financeira bem apertada à garganta que pegam na máquina de calcular e percebem que não há condições para encomendar outro filho. O que sobra é mais gente velha e um problema que é económico e social: a factura cada vez mais elevada que a segurança social tem que pagar; e a incerteza de uma reforma decente quando os não velhos de hoje o forem no seu tempo.
Se fôssemos como Solomon Burke depressa passávamos do oito para o oitenta. Se todos, ou pelo menos muitos de nós, desatássemos a multiplicar a prole, este era um lugar sobrepovoado. Depressa íamos de um extremo ao outro. Do estigma do envelhecimento à escassez de recursos, com a miséria a acossar muita gente. Mas é evidente que Burke não é um exemplo, é uma excepção. O problema não se poria com um punhado de pessoas que deixaram atrás uma numerosa descendência.
Quando os olhos repousam nos números da prole de Solomon Burke, salta à vista que deve ser um traço genético. Se pusermos o noventa no divisor (o número de netos) e o vinte e um no dividendo (o número de filhos), o quociente revela a média de filhos que cada filho do senhor Burke teve: quase quatro vírgula três. Não vale a pena ensinar o padre nosso ao vigário, e vir para aqui com o lugar-comum de que as médias escondem coisas muito diferentes. O que interessa é que os filhos do senhor Burke aprenderam a lição do progenitor e, eles também, deram o seu contributo para o combate aos problemas demográficos que nos assoberbam.
Todavia, já há diferença. Os filhos de Burke não foram tão pródigos na fabricação de descendência. Um registo de quatro filhos para cada filho de Burke fica muito aquém dos vinte e um filhos que o músico deixou no testamento. O que não me é dado a imaginar é um reunião desta família – no aniversário do patriarca, ou no natal, ou num casamento. Não há casa que suporte tanta gente a amesendar. E depois suponho que o senhor Burke teria um tremendo problema: ou tinha uma memória prodigiosa, ou como seria capaz de dizer sem hesitar, à medida que, uma atrás da outra, as caras passavam diante dele, os nomes dos vinte e um filhos e dos noventa netos?

20.10.10

Banalidades e baunilha


In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjYuXPN49B2K5MguxZIz_37hq-aVI421L0XYiwWY_GJ4cdIIWiwNDgTr3m6n5k4jxKjR_-iOZOSfGBhbX43QAp59uSLx_Vmz8QSY2baVlznqL2VrAul6gQouR3CZczdLPtCl_iskw/s800/Vanilla+Bean+Ice+Cream+500.jpg
Falemos, então, de banalidades. Ele há lá alguma serventia em massacrar o pensamento com as coisas muito sérias que andam em bolandas pelos interstícios do universo? De banalidades, falemos de banalidades. Que o pensamento precisa de se aligeirar. Precisa do ar fresco que entra pela janela que teimosamente se mantinha encerrada. Nem que o fresco ar saiba a nada, deixemo-lo entrar, esfregar-se pelo rosto onde crescem as rugas de todos os dias.
Encantemo-nos com um peixe que se debate na extremidade da cana de pesca, a grotesca imagem do anzol a perfurar-lhe a boca. Como numa fotografia de um valente matador a ser perfurado pela haste do touro, que entrou pelo lado inferior da mandíbula e saiu pelo céu da boca. Agredir os olhos com a imagem do peixe a rabear aflitivamente os derradeiros suspiros antes de aterrar já cadáver no prato dos comensais. E a água salgada, que jamais seria respirada por aquele peixe?
Ou um eléctrico que retrata a cidade ancestral, o eléctrico com utilidade antropológica, só para os turistas, arrastando-se lentamente pelas ruas. No seu amarelo torrado, o cheiro típico das madeiras sua matéria-prima de excelência, o ruído metálico dos rodados a sulcarem os carris. Já não seguem viagem apinhados, como há quase trinta anos quando subiam e desciam a Avenida da Boavista e os miúdos saltavam para o degrau do lado da porta fechada num arremedo do que hoje seria actividade radical. Quantos desses miúdos são hoje afamados doutores em invejável cargo empresarial, quantos já partiram do mundo depois de uma overdose fatal?
Ou os passos errantes num centro comercial da moda, num daqueles dias proibidos para deixar o corpo meter-se no centro comercial, depois de um suicida, ou apenas masoquista impulso o ter empurrado até ao tremendo ajuntamento. Só para observar a gente que passa. A gente que se detém à frente das lojas, das lojas de miudezas, ou das lojas da roupa que há-de estar quase na estação certa, ou das ourivesarias onde todos os sonhos femininos passam em fila na tela mental enquanto a sorte ao jogo não aparece. As tão heterogéneas pessoas que desfilam. Homens sentados nos bancos a meio do corredor que esboçam um frémito de impaciência enquanto as consortes se demoram em mais outra loja. Raparigas tão feias em demanda do príncipe encantado que tanto demora. Gente indiferente, sentada nos bancos da multitudinária esplanada, enquanto o cheiro a pipocas que vem do cinema contagia o enjoo.
Ou, ainda, procurar a banalidade que se derrama do gelado de baunilha a derreter por acção do calor que se pôs inesperadamente. Como se os olhos de repente fossem um diligente microscópio. Conseguiam ver o esbatimento dos cristais de gelo amarelecidos e uma câmara de vídeo filmasse o processo de descongelação do sorvete. Para depois, em tratamento de imagem, o filme ser manipulado consoante os humores do momento. Ora avançando as imagens a uma velocidade alucinante, os vinte minutos do filme reduzidos a um singelo minuto, num ápice o gelado derretido numa papa líquida. Ora capturando cada fracção de segundo para retratar em câmara lenta a metamorfose do sorvete em estado líquido, só para ver os cristais de gelo a avançarem numa elasticidade que anuncia o estado líquido.
E glória às banalidades, destas e doutro calibre, que se passeiam tão vãs pelos interstícios do universo. Pois há tantas vezes que o olhar se deve desviar para as banalidades do universo, subitamente emproadas à condição de convenientes coisas importantes. Viva, viva as banalidades.

19.10.10

Os fieis foram à missa de capacete


In http://www.dstsgps.com/upload/imgs/not%C3%ADcias/capacetes.jpg
Imagem mais enternecedora do que a igreja apinhada de fieis com a cabeça protegida por um capacete, só a do colega que apanhei ontem à tarde a escavacar zelosamente a cavidade nasal sem dar conta que os gabinetes têm uma janela que os expõem, quais aquários, aos olhares indiscretos que passam.
Foi em Lisboa, numa paróquia que se serve de uma igreja confiscada quando a monarquia foi deposta pela república. O dono é o ministério das finanças que, à boa maneira laica, tem sido um mau senhorio. O templo degradou-se de tal maneira que cai estuque do tecto, as rachas nas paredes são uma ameaça latente e, sabe-se lá, os anjos e santos que o ornamentam podem a qualquer altura estatelar-se no chão ou nos costados de um inocente que tenha ido fazer as suas preces àquele templo. Não sei se era na freguesia de São Sebastião da Pedreira, mas era aí que fazia sentido. É nas pedreiras que se coloca a dinamite que manda tudo pelos ares. Ora aquela igreja não é à prova dos estilhaços caídos do céu – perdão, do tecto.
O uso dos capacetes não dignifica a crença destes fieis. Pode-se lá admitir que eles se sintam carentes da protecção divina? A muita fé que os alimenta devia ser suficiente para não terem que arriscar a entrada na igreja com a moleirinha protegida por um capacete de trolha. Ia lá deus deixar que gente tão generosa, em culto a si mesmo, fosse vítima de uma derrocada. Terão estes fieis percebido que os capacetes envergados são um ultraje à consabida protecção divina aos que nisso acreditam?
Estes penitentes devem estar arrependidos. O episódio foi parar aos ecrãs da televisão. Pudera: de tão insólito, teria que cativar a atenção da televisão que só o brado apetece noticiar. Deus, para o caso de andar distraído com estas minudências, também estava a ver a RTP àquele dia e àquela hora. O que se confirma é que não são as trovoadas o grito enfurecido de deus. O tempo anda de anticiclone, não está para trovoadas. Se quisermos descobrir os sinais de fúria divina temos que olhar algures. Adivinho, todavia, que deus não ficou contente com a prudência dos crentes que se confunde com desconfiança na protecção divina. Agora é que faz sentido continuarem a entrar no templo com a cabeça resguardada pelo inestético capacete: quem sabe se deus, na sua não revelada faceta vingativa, não manda descer uns vestígios de estuque sobre os capacetes só para assustar. Um sinal divino, portanto.
Mas, nesse caso, as desconfianças dos frequentadores daquela igreja são um punhal cravado na bondade divina. Não lhes são autorizadas as dúvidas existenciais? Ou pode-se confirmar que os dogmas metafísicos são isso mesmo, dogmas que não admitem um beliscão numa vírgula sequer? Nesta notícia, quem fica mal no retrato: a bondade de deus, ou a apreensão dos fieis daquela igreja? Por outro lado, a hierarquia eclesiástica ficou estranhamente muda perante o acontecimento. Podia aproveitar para se atirar ao senhorio, lembrando como aquela igreja fora confiscada nos alvores da república que tanto antipatizou com os privilégios eclesiásticos. Ao contrário, manteve-se um raro silêncio de bispos, arcebispos e cardeais.
Tenho uma teoria para o emudecimento: como o capacete protege a cabeça, podiam os hereges e os provocadores profissionais desatar uma inapropriada comparação com outra cabeça protegida por outro tipo de capacete – de látex, no caso. E lá ia a igreja ser acusada de incoerência: como pode apoiar a prudência craniana dos fieis e recusar a protecção dos que não conseguem reprimir o satânico desejo carnal?

18.10.10

Sorriso ausente


In http://comunidade.sol.pt/photos/martinna/images/897327/original.aspx
Que é feito do teu sorriso?”, perguntas, o tom de voz a derramar mais melancolia para cima da muita melancolia que já era consumição. “Já há tantos dias que não te vejo esboçar um sorriso”, acrescentas. E a vontade de ensaiar os músculos faciais para o exercício do sorriso escapa-se entre os dedos, ainda mais.
Todavia, há uma prostração terrível que paralisa os músculos que se compõem num delicodoce sorriso. Como se fosse um travão mental, o rosto carregado, o rosto que transpira por todos os poros uma reveladora lividez, é a imagem límpida da escuridão que tudo adormeceu. As voltas da existência parecem trazê-la a um determinado ponto, a um repetitivo ponto que se julgava não voltar a ser o ancoradouro embebido pelo denso nevoeiro. Afinal, há lições que não foram aprendidas. O sorriso que se ausentou é a imagem translúcida de um sobressalto que teima em planar com as asas bem abertas, as asas que de tão grandes preenchem tudo com uma penumbra tristonha.
Mas de que adianta encerrar o sorriso nas varas do rosto densamente fechado sobre si mesmo? Os olhos também contristados parecem clamar por piedade. E se há coisa que recusas é que alguém te ofereça comiseração. É quando uma tremenda revolta interior se apodera, uma fúria sem freio explode desde o mais fundo que há, acrescentando mais uns pós de melancolia. E, porém, a interrogação não deixa de pairar sobre o horizonte: de que adianta esconder o sorriso? Os olhos toldados por uma tristeza ímpar só servem para perpetuar a comoção interior que retira sentido aos dias que passam.
Sabes: a cada dia que escondes o sorriso, é como se ausentasse a beleza interior que já foi tua”. O implacável diagnóstico esbarra no peito, deixa-o esmagado de dor. A auto-estima em polvorosa – mas a auto-estima, se é que ainda interessa. Olhas para trás, bem lá atrás onde o horizonte já não deixa perceber a nitidez das coisas. Insistes na negatividade ao teimar no exercício introspectivo. A angústia que te consome o sorriso é uma armadilha à lucidez. Há defeitos pessoais, ah pois há; contudo, eles não se sobrepõem às virtudes que teimas em reservar num quarto escondido. Não faças de ti a pior pessoa do mundo.
O segredo está em resgatar o sorriso, por discreto que seja. Deixá-lo planar com a frescura dos dentes à mostra, emprestando o brilho encantador aos olhos. Deixar que o sorriso se contagie aos olhos. Para fazer o funeral das coisas idas de que não há orgulho, onde cicia um inútil arrependimento. Afinal, cultivas tanto a inutilidade das memórias, a armadilha das estradas passadas a que somos convidados a regressar, e o sorriso inerte explica-se pela maceração a que te entregas pelos equívocos de outrora. Entrega-te de corpo e alma à coerência das filosofias que te inspiram, das filosofias que açambarcam muito do tempo disponível. Saibas honrar os pergaminhos das teorias que dizes serem as tuas e saberás a seguir resgatar a lucidez do sorriso.
Insistes em dizer que, por estes dias, o rosto cerrado é uma viuvez de ti mesmo. Um luto pelas tuas incapacidades interiores, da tua indisponibilidade para frutificar uma partilha. Mas a pergunta que já foi feita continua a acender o néon, repetitivamente: que serventia tem estrangulares o sorriso nas angústias que te consomem? A libertação das algemas que agrilhoam o sorriso é o segredo para sepultar essas angústias, as angústias que esperam em fila por devorar de ti mais um pedaço.

15.10.10

As fúteis


In http://www.sunsetrentals.com/images/Nightlife_rdax_640x424.jpg
Ah, a vida mundana! O néon nocturno, o glamour da “gente bonita” que atravessa as ruelas apinhadas, os corpos extasiados pelo fervor noctívago, álcool a rodos, olhares furtivos que se trocam entre estranhos, ou olhares que deixam de ser furtivos, engates, ou apenas um rol de fantasias incessantes. A vida mundana, mar inteiro de artifícios, tão zelosamente empacotada num espaventoso papel de embrulho. E tão cheia de nada por dentro.
São actrizes – manhosas, amadoras, inanes. Destinadas a uma futilidade ímpar. O radar sempre ligado, os sensores activamente empenhados em detectar as caras larocas que depois enfeitam fantasias. Adolescentes extemporâneas. Encantam-se com gente que acham conhecer e que, todavia, dá-se o inditoso destino deles as não conhecerem de lado algum. Às vezes, os tão fúteis espécimes que reinam na noite tropeçam nas fúteis que aspiram a algum reconhecimento na “escala social” noctívaga. Caem no engodo, embaladas para a coisificação de si mesmas. Iludem-se e tão depressa se desiludem logo a seguir, quando se cruzam outra vez e as fúteis nem são reconhecidas. Quando a tal não chegam, resumem-se às fantasias que não cessam de passar na tela mental.
Já dei conta do primor das conversas de rainhas da futilidade. Uma vez, uma contava à outra na mesa do lado da esplanada, espumando uma excitação em sinal de febril felicidade interior, que tinha ido à ginecologista com a prima e à saída uma famosa (e igualmente fútil) apresentadora de televisão anunciava às presentes que ia parir gémeos. Disse-o com um orgulho incomparável, como se todos tivéssemos que aplaudir a façanha gestacional da senhora da tevê. Ou talvez porque estava a dar a boa nova em primeira mão, puxando os galões à paternidade da fonte informativa. Ao imperativo de reconhecer a enorme relevância da boa nova, somava-se o obrigatório tirar o chapéu à prestimosa colaboração da informadora de ocasião. Fazendo lembrar aquele lugar-comum dos cinco minutos de fama a que todos julgamos ter direito uma vez na vida.
Doutra vez, no metro, duas militantes da futilidade comentavam as recentes novidades publicadas em revista cor-de-rosa. Comentavam com um conhecimento de causa próprio de catedráticas da coisa. Opinavam sobre as vidas daquela lamentável gente que deixa as portas da vida privada escancaradas à mórbida curiosidade de quem consome o género merdoso de “informação” (assim mesmo, com aspas). O que interessava era a vida dos famosos exibida nas páginas da revista, com fotografias comprometedoras e tudo. Talvez porque, tal como a futilidade que esvoaçava com o peso do chumbo, a vida daquelas duas fúteis era tão fútil e lacunosa de interesse que só a vida dos outros era motivo de interesse (apesar dela mesma tão cheia de futilidade).
As fúteis dizem conhecer metade do mundo e terem uma noção aproximada da outra metade, com nomes decorados e caras que não esquecem, exercitando uma memória fotográfica que podia ter serventia mais útil. Ah, como fico enternecido com a caderneta de cromos que dizem conhecer e depois, ó ácida ironia, esbarram na ausente reciprocidade de reconhecimento. Mas teimam na zoeira das aspirantes a subir na “escala social” do segmento. A ilusão das cores nocturnas misturada com os lampejos psicadélicos que enfeitam os locais de culto anestesia os sentidos. É o zénite das aspirações mundanas, o altar perfeito para a consumação da futilidade que vem enfeitada pelo vestuário aprimorado e pela maquilhagem excessiva, pelo tresandar do perfume de farmácia que deixar um demorado rasto na cauda dos sítios por onde passam.
Das fúteis militantes, nada senão pena.

14.10.10

Olhar maroto


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Os olhos espreitam pelo canto das pálpebras, a boca discretamente entreaberta, a respiração suspensa por uns instantes. Os olhos lívidos, um espelho de ao menos curiosidade. Aquele olhar penetrante é como um feixe de luz que se insinua dentro dos outros olhos. Os olhos saem de si e com eles arrastam todo o corpo para dentro do outro corpo. O feixe que leva uns olhos aos outros fermenta a combustão dos corpos.
Às vezes, um olhar destes é mais poderoso do que as estrofes de um poema por maior que seja a inspiração do poeta. Os instantes que duram estes olhares capturam o tempo dentro de uma moldura intemporal. Segundos que parecem minutos que se demoram. Só o relógio, o maldito relógio, dissolve o encantamento daqueles instantes. Afinal foram apenas uns segundos. Mas tão intensos, tão sumarentos, que os sentidos depressa atraiçoam o logro do tempo.
Aqueles olhos que se compõem num feixe de atracção pedem água, despertam nos olhos outros a mesma curiosidade que neles os fez um olhar lascivo. Entrecruzam-se, fixam-se por breves instantes, voltam-se a desviar mercê da timidez de uns olhos. Vagueiam no espaço em redor em demanda de uma orientação dos sentidos. Até que o irreprimível desejo de entrar nos olhos desejados fervilha e uns olhos não resistem a disparar outro olhar insinuante. Os outros olhos são apanhados, sucumbem ao mesmo desejo que derrota a timidez. Reencontram-se no mesmo espaço. Fixam-se uns nos outros, como se mais nada à volta existisse a não ser aqueles olhos de olhar tão denso, tão tórrido.
Trémulos, os corpos à distância do olhar tomam-se de um estremecimento singular. Estão à distância, alguma distância, mas é como se os corpos fossem um só pela combustão dos olhares emaranhados. E, contudo, a distância que se mantém, o local onde estão (público), a multidão nas imediações que não se apercebe da simbiose dos olhares, tudo impede que os corpos se toquem. Os olhos que se insinuam, os olhos que trocam de corpo com uma profundidade ímpar, valem mais do que a efervescência de um afago. Mesmo que o desejo que ferve nas veias grite com força a urgência de os dedos tactearem o mapa do outro corpo.
Os olhares que se entrecruzam, seja à distância dos antípodas numa sala ou na proximidade que revela a iridescência raiada que é espelho da profundidade do ser, retêm o feixe singular e poderoso de que não há palavras sucedâneas. Nesses olhares cúmplices há a coragem da revelação interior. Os olhos em hibernação recíproca adivinham o que os outros olhos querem dizer mas não precisam. É uma hipnose que maltrata a ditadura do tempo: enquanto os olhos se fixam uns nos outros e um vendaval percorre as entranhas, dir-se-ia que os ponteiros de todos os relógios se retêm numa irreprimível inércia.
E os olhos deitam-se uns nos outros, saciam-se do desejo que os deixa marejados, choram juntos na expressão maior da cumplicidade. Os olhos, engalanados com o rubor do momento, são o leito confortável onde os outros olhos encontram repouso. O alimento perene, assim saibam os olhos, em olhar libertino, procurar os outros olhos, saibam estes o caminho da reciprocidade.
Um poeta diria: os olhos dentro de uns olhos são o único alimento de que os corpos carecem.

13.10.10

Do doce desconhecimento das coisas


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Às vezes, a maior serventia era sermos cegos às coisas do mundo. A certas coisas do mundo, iníquas, aqueles actos de uma equívoca peça de teatro que não devia ter passado de um demorado pesadelo. Mais valia perfumar os dias que passam com uma venda nos olhos. Essa escuridão, ao menos, impedia que os olhos fossem agredidos com lamentações forasteiras ao tempo presente.
Tudo era melhor se o estado natural, diário, fosse uma anestesia absoluta. O corpo levitava, apenas. Os olhos, ainda que abertos, incapazes de discernir o que quer que fosse em redor. Fosse o inimaginável que se abate como um abalo telúrico, desfazendo o chão debaixo dos pés. Fosse tudo o que tivesse vizinhança tão próxima com o olhar que, não estivesse ele anestesiado, desataria gritos lancinantes a povoar os ouvidos até no sono, até à exaustão dos sentidos.
O estado ideal era seguir pelas ruas com os olhos vendados. Ter a capacidade para não esbarrar em obstáculos conhecidos, ou nos imponderáveis que se semeiam, aleatórios, nem ser arrastado para armadilhas que são compostas pela própria demência que teima. Os olhos veriam apenas para dentro. Não interessa o que veriam; se uma paisagem interior de um bucolismo arrebatador, ou se um lugar pestilento, cheio de lavas vulcânicas em constante crepitar, um insuportável odor sulfúrico a contagiar um perene enjoo. Ao menos essa paisagem interior, nem que fosse a mais terrível das paisagens, escondia-se nos meandros do ser.
Há quem consiga simular as coisas como elas não são. Quem tenha a capacidade para vegetar, inerme, num doce estado de negação. Falsamente doce, contudo, todo o açúcar que acalma os sentidos a não passar de cicuta que mata com uma lentidão exasperante. Convencem-se que os sinais que vêem são um engodo, como se a certa altura o real estivesse acantonado a uma fantasia. Não lhes é dado a ver que a metamorfose do real em fantasia é a maior das fantasias, um patológico estado de negação, o prólogo do que se ausenta de si. O que sobra do amor próprio já é nada. A simulação de tudo, como se tudo fosse um palco imaginário com rostos conhecidos em corpos desconhecidos, é a autêntica falácia de si.
Mas, às vezes, apetece entregar o corpo a esta letargia. Apetece reinventar os pontos cardeais, refazer as estradas por onde os pés passam, renunciar ao caminho errante que dispõe a existência numa dissimulação malsã. Assim como assim, ele há tanta gente a fazer de conta. Não seremos todos actores de nós mesmos, tanto que se diluem as fronteiras entre o genuíno e as encenações que disfarçam as pessoas atrás das máscaras que querem mostrar?
Mas nem tudo consegue ter a perfeição idealizada. Os olhos que vêem não estão anestesiados. Os olhos encantam-se, ruborizam, falam com olhares demorados, sagram as coisas belas que são legadas em virtuosos golpes da vida. Mas os olhos embaciam-se diante das asperezas que os ferem. Sangram lágrimas, às vezes. Oxalá os olhos se tecessem numa parede embotada, como se todas as pedras que se esmagam contra eles não trouxessem dor alguma. E as lágrimas secassem. Os oxalás não deixam de ser presunções da negação que é isso mesmo, um simulacro que dissolve a genuinidade em nada. A dignidade, talvez pérfida e incómoda, não deixa que esses oxalás presidam ao manjar da existência.

12.10.10

E o que é que isso interessa?

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“Eu disse: "acabamos a gostar do medo, do arrepio que nos suspende a fala."
Tu disseste: "um dia fiquei sem nada. Um mundo inteiro por descobrir."
Eu disse: "..."
Eu disse: "o que é que isso interessa?"
Tu disseste: "...nada"”.
Mão Morta, "Tu disseste".


A espuma dos dias monta nas sobras da atenção. Olha-se para trás. E, às vezes, tudo perde significado. Um vazio. Mergulhados num pesadelo disforme, como se os rios tivessem todos água salgada e as árvores comessem as suas raízes. Ou uma lua a rivalizar com a centelha solar nos mais altos dias soalheiros. O arrepio que corta a respiração é a apetecível adrenalina. A imersão na escuridão de um poço, pela insuportável presença da luz diurna. Uma luz frágil de uma existência diferente, de uma existência que faça sentido, acende-se. A convicção que se instala.
Mas, se calhar, nem isso importa. As pedras dos monumentos, em toda a sua grandiosidade histórica, são o grotesco grito mudo que ensina a inutilidade do passado. Ao perder o rasto aos passos de outrora, como se fosse uma exigível depuração, crava-se bem fundo o sobressalto no espírito permanentemente inquieto. Enfim, um dia herdou um despovoado nada, a angústia sublime de desconhecer se o porvir terá preenchimento.
Por isso, nada pode interessar. Nada, desde as coisas mais frágeis às que se possuem de uma força irremovível, nada ganha espessura. Porventura, o segredo é correr pelos dias numa despreocupada errância. De que servem os planos traçados pacientemente em cima de ornamentados estiradores, de que servem, se invariavelmente abortam? O sal da água corrói as pedras de tanto nelas se esmagar. Não há granito que suporte a aspereza da fúria avassaladora das ondas que sucumbem nos braços dos rochedos. E nem isso importa: o envelhecimento que sussurra traz as suas marcas, já duráveis. As rochas são inamovíveis. Estão ali, feitas para abraçar o enraivecido mar a despedaçar-se em espuma alterada. E, porém, só espuma.
De que serve pretender ser o que se não é capaz? Que interessa a frontaria firme, como se todas as dores que ali se acometem não motivassem o mínimo esgar? É que os pesares arqueiam o corpo quando ele se faz insensível sem o ser. As veias ardem por dentro e ninguém consegue apagar a fogueira incandescente, por ninguém a ver. Todavia, há um entorpecimento que toma lugar e é uma sensação agradável. O chão de pedra onde as costas se deitam deixou de ser um espinhoso leito. E não há vinho que embriague, não há palavras que magoem, ou palavras que encantem. As lágrimas secaram-se, porque tudo deixou de interessar. Já nem as pétalas sedutoras. As lentes deixaram de estar embaciadas.
Um dia fiquei sem nada. Um mundo inteiro por descobrir”. Ou não. Não é o nada que importa, ou o tudo que reconfigura uma existência plena. As lentes embaciadas turvam a lucidez. E a lucidez não se descompõe se não perceberes que as lentes estão embaciadas. O dia mais alto, aquele onde se recolhe o adocicado, aveludado vinho, é uma promessa estéril. Que interessam os lemes e as bússolas e os ventos dominantes? Que interessam os ideários, as palavras engalanadas com emoções ferventes, ou as promessas que se depõem na sua impossibilidade?
No impassível vazio contudo não doloroso sobram apenas as memórias. As memórias todavia cadafalso. Elas incensam a irrelevância de tudo. E não, não é resignação, nem um torpor doentio. É buscar no nada a essência de algo. Até que esse algo se extinga, enfim inacessível. Enquanto for algo, será algo. Tê-lo nas mãos enquanto âncora merecedora. E é isso que interessa.

11.10.10

Mar outonal


In http://www.temmais.com/UpLoad/Blog/denisecorrea/Editor/onda.jpg
Não é ainda pelas folhas caducas a fazerem o seu restolho no solo. É pelo primeiro mar furioso que se esbarra na costa, depois dos primeiros sinais de tempo tumultuoso, que o outono se anuncia. As folhas ainda não perderam viço. Perduram verdes nas ramagens à espera do seu ocaso para ganharem uma espessura enrijecida. Só nessa altura se deitam na avermelhada tonalidade que adivinha a queda ao sopro mais agreste do vento. Mas o mar, o mar encapelado, furioso, já mostrou uns fragmentos do outono. É o rotineiro calendário a repetir-se a cada ano que dobramos. O calendário das estações que repetem rituais conhecidos.
Os primeiros ventos desenfreados descompuseram as ondas do mar, revolvidas em majestosos golpes caóticos e faúlhas de espuma numa coreografia sumptuosa. Depois da tempestade pôs-se um dia soalheiro, ainda cálido. Mas no mar as ondas continuavam a cavalgar altas umas atrás das outras, desassossegando as águas que se empanturravam de soberba, assenhoreando-se do areal, deslocando pedras, invadindo os passeios feitos para as higiénicas caminhadas das pessoas.
As ondas levantavam-se a uma altura medonha, levando consigo um rasto de espuma que se libertava do topo da onda mercê da brisa que estava. Erguiam-se como se fossem cutelos ameaçadores que se queriam abater sobre os arrependidos de qualquer coisa. Tudo parecia em câmara lenta, desde o instante em que a onda se erguia do alvoraçado mar até a se desfazer com fragor, libertando uma espuma abundante que se revirava em si mesma. A coreografia de cada onda resumia-se a uns breves segundos que se pareciam demorar em minutos.
Horas mais tarde, ouvi no noticiário: uma em cada cinco pessoas tem perturbações mentais. E uma das razões é o outono que vem tomar o lugar do verão. Pelo que me é dado a ver, o outono – essa estação magnífica, a mais imponente de todas – é injustiçado. A notícia acrescentava: às primeiras chuvas, as pessoas ficam com propensão para a depressão. Fraca têmpera de quem assim é. As chuvas têm o seu lugar ao dobrar o equinócio estival – como podemos contrariar esta inevitabilidade da natureza? E a rotina, não se consome com o verão prolongado, a sucessão interminável de dias soalheiros e de calor que deixam os corpos transidos em suor? Os dias escurecem – e essa parece a razão dos mentais padecimentos. Escurecem, pela luz natural que encolhe a alvorada e o ocaso. E escurecem à mercê das chuvas diluvianas e ásperas, dançadas pelo vento desaforado. Como pode alguém logo sentir saudade do que acabou de dizer adeus?
Se estivesse com a bata branca de um psiquiatra, prescrevia aos pacientes da fobia outonal demoradas estadias à frente do mar. Para se encantarem com as furiosas cambalhotas do oceano em tempestuosa levitação. Os deprimidos atormentados por uma indomável fúria interior saberiam aplacá-la diante do mar alterado. A fúria das ondas, o bálsamo para a sua cólera interior. E aos deprimidos tomados pela inércia, poderiam lá ficar insensíveis aos gritos do mar, poderiam lá continuar impassíveis enquanto testemunhas das encrespadas águas?
Não são excessivas as loas aos fragmentos da natureza que desamarram a contemplação. Uma das suas maiores dádivas é o perfume de caos que vem com os primeiros sinais de outono. A melhor expressão dessa dádiva é o mar possuído por uma raiva explosiva, uma raiva que parece sedimentar todas as raivas que planam, escondidas, pelo interior dos espíritos em sobressalto.