4.10.10

A felicidade é uma quimera


In http://www.viajantedotempo.com.br/poemas_com_molduras/fundo_nostalgia.jpg
Pode ir com lágrimas, uma pieguice incomodativa. Ou com sentido de humor, talvez como se houvesse a forte convicção que os percalços são isso mesmo – intermitências que absorvem alguma luminosidade que pontua uma vida inteira. À conta das lágrimas, uma entrega que dramatiza as adversidades do momento. Afogueado pela intermitência do momento, parece que a vista que se deita sobre a parte de trás apenas entrevê um denso nevoeiro. E não é esse o caso. À conta do humor que consegue parodiar a desdita do momento, este desafio: às vezes, a implosão é necessária para tudo refazer.
Todavia, é nestas intermitências que a lucidez se parece ausentar. Provavelmente sobressaltado pelas dores interiores, às voltas com a angústia que acelera a cadência do coração, só contam as adversidades que preenchem o horizonte com os dias a negro. Os olhos, apenas concentrados nos dias presentes e na sua pungência, são incapazes de resgatar o retrato do autêntico património da fortuna. Os olhos turvam-se com a angústia que dilacera as veias. O esquecimento apascenta-se na fervência das dores presentes.
O calendário reserva episódicos momentos em que assomam à superfície os punhais estupidamente guardados para destruir toda uma felicidade cerzida. A demência está no cansaço dessa ventura. Ou como ela se entrega a uma qualquer rotina, perdendo por dentro qualquer significado, esvaziando-se com o tempo da acomodação. E, contudo, não deixa de ser demencial que alguém deite fora todo o império que soube construir. É patológico: como pode alguém sentir-se mal por se sentir tão bem? Seremos imprestáveis para os dias que perfumam a existência com as manhãs que se prometem de uma claridade magnífica?
Nos despojos da felicidade, a nostalgia grita bem alto. A nostalgia da incapacidade. Os olhos metem-se ao caminho e resgatam aos tempos idos todos os erros que trouxeram a actual devastação. Logram-se arrependimentos inconsequentes. Ao primeiro impulso, o punho apetece meter-se pela boca dentro, subindo ao cérebro em demanda das células que comandam esta maneira imprudente de ser. Como se o punho bem cerrado pudesse, por este acto de prestidigitação, desterrar a suicida denegação da felicidade. Ou os dentes mordessem as mãos e os braços, na autoflagelação que castiga a insensatez de quem desaproveita todo um império que veio parar aos pés. Ao segundo impulso, uma interrogação esmaga-se contra o peito com um estrépito assustador: a fortuna desperdiçada era genuína, ou apenas uma habituação que toldou o seu significado?
Pode a tremenda angústia ser o anestésico da lucidez. Pode a angústia desmembrar a racionalidade, deposta perante o fluxo imparável de imagens e ideias que põem um denso nevoeiro à frente dos olhos. Podem até esvoaçar momentos de nostalgia quando a memória recupera de outrora instantes debruados ao ouro da intensa felicidade. A momentânea deriva da lucidez que instala uma tempestade cerebral multiplica a confusão interior. A nostalgia, trazendo à superfície a intemporal beleza de uma felicidade entretanto desfeita, sobrepõe-se ao telescópio da actualidade. Essa lente, implacável, a lente por onde a racionalidade espreita, mostra que a impossibilidade derrotou a ventura de outrora.
A impossibilidade falou mais alto. Ditando a falência do que a nostalgia insiste em resgatar do passado.

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