13.10.10

Do doce desconhecimento das coisas


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Às vezes, a maior serventia era sermos cegos às coisas do mundo. A certas coisas do mundo, iníquas, aqueles actos de uma equívoca peça de teatro que não devia ter passado de um demorado pesadelo. Mais valia perfumar os dias que passam com uma venda nos olhos. Essa escuridão, ao menos, impedia que os olhos fossem agredidos com lamentações forasteiras ao tempo presente.
Tudo era melhor se o estado natural, diário, fosse uma anestesia absoluta. O corpo levitava, apenas. Os olhos, ainda que abertos, incapazes de discernir o que quer que fosse em redor. Fosse o inimaginável que se abate como um abalo telúrico, desfazendo o chão debaixo dos pés. Fosse tudo o que tivesse vizinhança tão próxima com o olhar que, não estivesse ele anestesiado, desataria gritos lancinantes a povoar os ouvidos até no sono, até à exaustão dos sentidos.
O estado ideal era seguir pelas ruas com os olhos vendados. Ter a capacidade para não esbarrar em obstáculos conhecidos, ou nos imponderáveis que se semeiam, aleatórios, nem ser arrastado para armadilhas que são compostas pela própria demência que teima. Os olhos veriam apenas para dentro. Não interessa o que veriam; se uma paisagem interior de um bucolismo arrebatador, ou se um lugar pestilento, cheio de lavas vulcânicas em constante crepitar, um insuportável odor sulfúrico a contagiar um perene enjoo. Ao menos essa paisagem interior, nem que fosse a mais terrível das paisagens, escondia-se nos meandros do ser.
Há quem consiga simular as coisas como elas não são. Quem tenha a capacidade para vegetar, inerme, num doce estado de negação. Falsamente doce, contudo, todo o açúcar que acalma os sentidos a não passar de cicuta que mata com uma lentidão exasperante. Convencem-se que os sinais que vêem são um engodo, como se a certa altura o real estivesse acantonado a uma fantasia. Não lhes é dado a ver que a metamorfose do real em fantasia é a maior das fantasias, um patológico estado de negação, o prólogo do que se ausenta de si. O que sobra do amor próprio já é nada. A simulação de tudo, como se tudo fosse um palco imaginário com rostos conhecidos em corpos desconhecidos, é a autêntica falácia de si.
Mas, às vezes, apetece entregar o corpo a esta letargia. Apetece reinventar os pontos cardeais, refazer as estradas por onde os pés passam, renunciar ao caminho errante que dispõe a existência numa dissimulação malsã. Assim como assim, ele há tanta gente a fazer de conta. Não seremos todos actores de nós mesmos, tanto que se diluem as fronteiras entre o genuíno e as encenações que disfarçam as pessoas atrás das máscaras que querem mostrar?
Mas nem tudo consegue ter a perfeição idealizada. Os olhos que vêem não estão anestesiados. Os olhos encantam-se, ruborizam, falam com olhares demorados, sagram as coisas belas que são legadas em virtuosos golpes da vida. Mas os olhos embaciam-se diante das asperezas que os ferem. Sangram lágrimas, às vezes. Oxalá os olhos se tecessem numa parede embotada, como se todas as pedras que se esmagam contra eles não trouxessem dor alguma. E as lágrimas secassem. Os oxalás não deixam de ser presunções da negação que é isso mesmo, um simulacro que dissolve a genuinidade em nada. A dignidade, talvez pérfida e incómoda, não deixa que esses oxalás presidam ao manjar da existência.

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