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Dizem que os grandes escritores são amigos da bebida. Que andam sempre enamorados por uma garrafa que contenha líquidos com elevado teor alcoólico. Dizem que os grandes escritores encontraram momentos ímpares de inspiração quando estavam acompanhados do álcool, apanhados por tremendas bebedeiras. Defendem esta teoria: o estado ébrio é bom conselheiro das artes e das letras.
Ora isto talvez explique que este arremedo de escritor não consiga sair da cepa torta. Estive cinco anos sem meter um grama de bebidas alcoólicas no sangue. Neste tempo todo fui mandado parar pela polícia três vezes e, das três vezes, soprei ao balão. Oxalá todas as certezas que queremos que nos acompanhem fossem tão seguras como a que tive daquelas três vezes. Podia lá ser que o balão acusasse vestígios de álcool se há tanto tempo a bebida não me visitava.
Pelo caminho, terão ficado perdidas no éter páginas de brilhante escrita – a crer na teoria que ajuramenta a inspiração divina proporcionada pelos sentidos turvados por uma qualquer bebida alcoólica ingerida em doses cavalares. Mas posso estar errado no diagnóstico. O mais certo é ser um projecto de escritor, com as ambições até agora sempre reprimidas a deixar para a posteridade uns textos num quase anónimo blogue. (Sim, nunca me desprendi do pudor de propor o que quer que fosse a uma editora.) Será pudor, será receio de ver a proposta de publicação recusada (as dores na auto-estima são das dores mais pungentes). Ou, na hipótese mais auto-indulgente, a consciência das limitações da escrita de quem andou tantos anos afastado da tentação alcoólica. Se não bebia, como podia ambicionar a ser bom escritor?
Já tive um passado de excessos com a bebida. Algumas bebedeiras, esparsas mas descomunais. À memória sobe uma rural passagem de ano. Ainda não era meia noite e já andava desorientado, tais as doses de bebida que tinha ingerido. Dei comigo agarrado a umas folhas de papel, a caneta maquinalmente a debitar uns esboços de poema. Tinha a impressão que eram estrofes desarticuladas, a caligrafia a arrastar-se pela mão trémula numa sucessão de hieróglifos ininteligíveis. Derrotado pela visão turvada e pelo cansaço, a meia noite dessa passagem de ano foi testemunhada pelo sono em que entretanto caíra.
Sem me lembrar de o ter feito, guardei os papeis onde escrevinhara os esboços de qualquer coisa que seria poética se fizesse sentido. Dias mais tarde descobri os papeis encostados ao canto de uma gaveta. Não posso ser fiador da teoria que associa inspiração literária ao consumo alarve de bebidas alcoólicas. Não a posso caucionar através daquele devaneio literário embebido no ébrio estado em que me encontrava. A caligrafia caótica nem sequer deixou perceber as palavras atabalhoadas que verti nos papeis amarrotados.
Podia repetir a experiência. Assim como assim, já pus de parte a teimosia da abstinência da bebida. Podia, um dia destes, enfrascar quantidades industriais das bebidas que aparecessem pela frente. Sentado à frente do computador – já não como outrora, no tempo das cavernas, em que ainda não usávamos computadores pessoais – deixaria fluir a inspiração com a impressão digital da embriaguez. No dia a seguir, entre as tremendas cefaleias e as náuseas, voltaria a essas palavras (se a pós-ebriedade conseguisse descobrir onde tinham sido gravados os textos). Talvez para me convencer do escritor falhado que havia derramado as nem pelo álcool inspiradas palavras.
3 comentários:
Se tivesse que tecer um conselho eu mergulharia nas trevas medievais dos jargões e acompanharia assim:
"mas se conselho fosse bom era vendido, e não dado"
Sim, eu iria te indicar éter na mente; fumo, daqueles de pitadas excessivas e desesperadas e etc etc etc.
Ocorre que , homem abstêmio, ainda que longe da bebida conseguiu produzir um texto que não me trouxe o arrependimento excruciante de ter empenhado tempo em ler algo fútil.
Nem sou grande, nem escritor, ou ainda as duas coisas ao mesmo tempo, mas bebo.
Enfim, gostei muito do blog e do que escreves por aqui.
Vou manter vigília!
Até mais!
Há bastante tempo, li ou ouvi, já não sei precisar, uma entrevista que alguém fez ao escritor Baptista Bastos, em que ele dizia que sempre bebeu bastante enquanto escrevia. Contudo, confessou que teve de alterar os seus hábitos porque o álcool já estava a interferir nas suas capacidades de escrita, impedia-o de achar as palavras certas para o fluxo normal e escorreito da escrita. O estranho é que não se queixou de não perceber a sua escrita, tal como lhe aconteceu a mim e a si, e na altura em que esta entrevista aconteceu, não creio que o BB usasse o computador.
Pois um dia, teria eu os meus saudosos 25 anos, fui a um casamento de amigos, de gente bem simples. A festa foi num pequeno restaurante, que em nada estava vocacionado para estes eventos, por isso é que veio a dar no que deu.
Escusado será dizer, que quando vou a festas deste género ou jantares, gosto de beber, por isso eu bebi. Já tive ocasiões em que por muito que bebesse nunca cheguei a sentir efeitos disso, acontece-me assim porque estou oprimida, não me sinto bem naquele lugar, ou não me sinto bem com aquelas pessoas, enfim, algo me tolhe. Contudo, nesse dia, eu estava com amigos, e nada me tolheu. A certa altura e no auge da animação da festa, levantei-me da cadeira e dispus-me a proferir um discurso, lancei mão à cabeça de um leitão assado, que nesse instante haviam colocado num lugar da mesa ao meu alcance e ergui-a no ar, à laia do troféu. Foi quando o dono do restaurante, ao passar perto de mim, proferiu as incautas e infelizes palavras:
"Isso, isso, é para ver se tem mais juízo".
Ao ouvir isto, de imediato me transformei, porque entendi aquelas palavras como um ultraje. Considerei que o indivíduo me estava a querer dizer que eu era uma desmiolada, uma tonta, sei lá. Foi o fim da macacada e da festa. De nada valeram as desculpas! Qual quê!
Fui para casa dominada pela raiva e a necessitar de fazer algo que mitigasse tamanha afronta de que me julgava vítima. Decidi escrever um artigo para publicar no jornal da terra, para fazer uma crítica a este estado de coisas, que é o facto de qualquer um abrir as portas de um restaurante, sem ter a mínima formação para lidar com o público e situações inerentes a esta actividade.
No dia seguinte, ao acordar, já cheia de vergonha e com a consciência a martelar-me fui pelo rascunho e o que vi fez-me cair no maior dos espantos! Não consegui ler nada!Pareciam hieróglifos, uma coisa totalmente estapafúrdia! Mas o que mais me confundia é que ainda guardava na minha memória, que na noite anterior, quando estava com os copos, conseguia ler aqueles gatafunhos perfeitamente! Será que se eu bebesse novamente, conseguiria tornar a ler aquele tão estranho manuscrito? Nunca se sabe!
O álcool é prodigioso (dizem): dá-nos esta capacidade de entender o que é ininteligível quando estamos sóbrios. Tom Waits gabava-se, no auge das suas bebedeiras, de nunca estar sóbrio para não ter que suportar as dores da ressaca.
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