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Pontos finais falazes. Parecem pontos finais. Vistos à lupa, descobre-se uma perna que desfaz a redondeza do ponto. Ele deixa de ser final e entrega-se à metamorfose da vírgula. Outras vezes, a adulteração do ponto final é mais sofisticada. Pontos e vírgulas, um compasso de espera para interiorizar as palavras que ficaram atrás. A sede de uma reflexão, sem que a água abundante derive para as palavras que vêm de frente, refreadas pela barragem que é o ponto e vírgula. Ou o ponto final que declina diante de dois pontos: uma ponte, perseverante, impede a travagem. É a ponte que se estende para as palavras que aparecem depois, a emulsão de um remoto ânimo que se descerra, por infrutífero que pareça.
A recusa do ponto final sinaliza a não definitividade das coisas. É como se a mão, ainda trémula pelo entorpecimento das emoções, se recusasse a arredondar o sinal. Ela guardava as escondidas ilusões, o fermento de uma qualquer vírgula, ou ponto e vírgula, ou dois pontos, a retardar a aposição do ponto final. As esperanças avivam-se quando o ponto final sucumbe. Ou agoniam quando a mão é incapaz de colocar senão o ponto final.
Doutras vezes, nem o ponto final liquida um tímido feixe de luz que espreita por uma reentrância descuidadamente esbulhada. O ponto final é uma parede que cerceia a frase. Como se estivesse a avisar que o que estava a ser dito, com a aparência de ser terminante, era afinal transitório. Enquanto a frase se não quebrar num fatal parágrafo, o assunto continua a medrar. Arrasta-se, num interminável parágrafo que exaure a paciência. Podem alguns pensar que as frases que se completam umas às outras no interminável parágrafo são a paciente formulação da lucidez que combate o ostensivo despejo das emoções. Que o parágrafo, fosse ali colocado, era extemporâneo. Que fora cedo para lacrar as palavras com um selo concludente.
Não há textos corridos, porém. Todas as histórias se deslaçam entre si, o deslaçamento embebido nos parágrafos decisivos. As mãos podem lutar pelo prolongamento das frases; podem converter pontos finais noutra pontuação que não as liquida, como se importasse manter uma porta entreaberta. Mas tudo isso resume-se a uma ilusão tremenda. Acredita-se que as frases não chegam a ser interrompidas. Parecem agressores da boa escrita, um atabalhoado aglomerado de palavras em frases que se estendem por linhas e linhas sem fim. A certa altura, depois de recuar uma e outra vez para retomar o fio condutor, a frase esgota-se na sua ininteligibilidade. E nem as palavras, as palavras em si, fazem sentido.
E então, com a frieza da noite a esmagar-se nos ossos e o vento gélido a povoar as lágrimas que se derramam, só se escuta o clamor do parágrafo. Proclama-se, com solenidade e alguma tristeza (até), um ponto final. É o derradeiro ponto que condescende com o moribundo parágrafo. As palavras que ainda estivessem por dizer caíam num precipício. Já não havia espaço para as acolher. Apenas o vazio que sobra à frente da linha desocupada, onde já não cabem palavras algumas.
O precipício é uma renovação inteira. As palavras – as palavras diferentes – são recriadas no novo parágrafo. O precipício que cerceou o demorado parágrafo antecessor é a transigência ambicionada. O parágrafo novo, a renovação de tudo.
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