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Os olhos espreitam pelo canto das pálpebras, a boca discretamente entreaberta, a respiração suspensa por uns instantes. Os olhos lívidos, um espelho de ao menos curiosidade. Aquele olhar penetrante é como um feixe de luz que se insinua dentro dos outros olhos. Os olhos saem de si e com eles arrastam todo o corpo para dentro do outro corpo. O feixe que leva uns olhos aos outros fermenta a combustão dos corpos.
Às vezes, um olhar destes é mais poderoso do que as estrofes de um poema por maior que seja a inspiração do poeta. Os instantes que duram estes olhares capturam o tempo dentro de uma moldura intemporal. Segundos que parecem minutos que se demoram. Só o relógio, o maldito relógio, dissolve o encantamento daqueles instantes. Afinal foram apenas uns segundos. Mas tão intensos, tão sumarentos, que os sentidos depressa atraiçoam o logro do tempo.
Aqueles olhos que se compõem num feixe de atracção pedem água, despertam nos olhos outros a mesma curiosidade que neles os fez um olhar lascivo. Entrecruzam-se, fixam-se por breves instantes, voltam-se a desviar mercê da timidez de uns olhos. Vagueiam no espaço em redor em demanda de uma orientação dos sentidos. Até que o irreprimível desejo de entrar nos olhos desejados fervilha e uns olhos não resistem a disparar outro olhar insinuante. Os outros olhos são apanhados, sucumbem ao mesmo desejo que derrota a timidez. Reencontram-se no mesmo espaço. Fixam-se uns nos outros, como se mais nada à volta existisse a não ser aqueles olhos de olhar tão denso, tão tórrido.
Trémulos, os corpos à distância do olhar tomam-se de um estremecimento singular. Estão à distância, alguma distância, mas é como se os corpos fossem um só pela combustão dos olhares emaranhados. E, contudo, a distância que se mantém, o local onde estão (público), a multidão nas imediações que não se apercebe da simbiose dos olhares, tudo impede que os corpos se toquem. Os olhos que se insinuam, os olhos que trocam de corpo com uma profundidade ímpar, valem mais do que a efervescência de um afago. Mesmo que o desejo que ferve nas veias grite com força a urgência de os dedos tactearem o mapa do outro corpo.
Os olhares que se entrecruzam, seja à distância dos antípodas numa sala ou na proximidade que revela a iridescência raiada que é espelho da profundidade do ser, retêm o feixe singular e poderoso de que não há palavras sucedâneas. Nesses olhares cúmplices há a coragem da revelação interior. Os olhos em hibernação recíproca adivinham o que os outros olhos querem dizer mas não precisam. É uma hipnose que maltrata a ditadura do tempo: enquanto os olhos se fixam uns nos outros e um vendaval percorre as entranhas, dir-se-ia que os ponteiros de todos os relógios se retêm numa irreprimível inércia.
E os olhos deitam-se uns nos outros, saciam-se do desejo que os deixa marejados, choram juntos na expressão maior da cumplicidade. Os olhos, engalanados com o rubor do momento, são o leito confortável onde os outros olhos encontram repouso. O alimento perene, assim saibam os olhos, em olhar libertino, procurar os outros olhos, saibam estes o caminho da reciprocidade.
Um poeta diria: os olhos dentro de uns olhos são o único alimento de que os corpos carecem.
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