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Mau o dia para me meter com a vetusta república (assim mesmo, com “r” minúsculo, não levem a mal tamanha ousadia os adoradores da coisa). Ela festeja cem anos de vida e a malta que se exalta com os feitos carbonários vai tirar o fatinho de gala do armário e engalanar-se para as solenidades.
Ora eu, que renego tanto a monarquia com o endeusamento da república, dei de caras com esta fotografia iconográfica da república. Demorei-me nela. Comecei por reparar nos seios humildes da república. Se fosse hoje, por estes dias de hedonismo em que as coisas se ambicionam fartas, a república seria mamalhuda. Notei como a multidão de nababos parecia ignorar a donzela – talvez tementes por ela empunhar uma espada, não fosse a mesma descair com violência sobre o primeiro marialva atrevido que desviasse o olhar com lascívia para os seios desnudados. Ou então aqueles inevitavelmente barbudos (modismo da época) eram todos eunucos. Ou reprimidamente homossexuais. O que porventura é o pano de fundo para a existência dos marialvas lusitanos – que se gabam de feitos varonis, de tratarem as mulheres como objectos e de irem a muitas touradas – e de como são monárquicos dos sete costados.
Como as minhas costelas não se banharam nos românticos ideais republicanos, desconheço o simbolismo daquela imagem iconográfica. Se na altura as donzelas vestiam saturado vestuário ao ponto de poucos poros ficarem à mostra do olhar masculino, como aparece retratada a república com seios à mostra é um enigma que os servis do regime podiam explicar. Até lá, arrisco uma interpretação própria.
A república é uma palavra feminina. Caprichos linguísticos que prestaram um serviço aos que estavam fartos da decadente monarquia. Como as donzelas de então andavam reprimidas debaixo do farfalhudo vestuário, a deposição da monarquia teria imagem simbólica na deusa república, na generosa deusa república de seios à mostra para comprazimento dos varões (e desinteresse das senhoras, o que não causa surpresa, pois na altura as mulheres eram cidadãs de terceira). Afinal estava enganado: os barbudos no aglomerado em redor da deusa república não eram insensíveis à lascívia. No fim de contas, a libertação das amarras da monarquia teve este efeito sexual simbólico. Diria que a instauração da república foi um prenúncio da revolução sexual de Maio de 1968 em Paris e do festival de Woodstock.
A imagem carrega outros simbolismos. Como este, tão paradoxal: a dona república a adejar sobre a multidão, sem que se perceba se os seus pés repousam sobre os ombros de uns valentes voluntários, evocou outras imagens iconográficas que seriam popularizadas anos depois. As imagens feéricas da aparição da virgem Maria aos pastorinhos na Cova da Iria. E dei comigo a reparar na impressão digital metafísica da imagem em que a dona república se fez regime. O que desatou o paradoxo: estes primeiros republicanos eram profundamente anticlericais. E, contudo, serviram-se de uma imagem com contornos tão religiosos. Talvez o incontrolável subconsciente.
Hoje, cem anos de república depois, aquela imagem é uma saudade que alimenta o fervor dos aduladores do regime. Hoje, que não são para serem levados a sério os escassos monárquicos que por aí andam, e menos ainda o patético “pretendente ao trono” (um inexistente trono), estes festejos evocam em mim tiros de pólvora seca. Muito ruído por nada. Não sei se a dona república, a senhora que aparece retratada, ainda vive. Hoje já ninguém a convocava para o retrato. Os seus seios ressequidos não eram atractivo nem para os indefectíveis. Essas murchas maminhas, a imagem perfeita de uma república que já não dá leite há muito tempo.
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