30.11.10

A sumptuosa Madeira


In http://www.airsim.net/nc/kmetros/madeira4.jpg
Como pode – como pode uma ilha tão pequena albergar tantos e escarpados montes? Numa sucessão interminável, como se a arquitecta natureza estivesse possuída por uma fúria indomável ao esculpir a sua orografia. Como pode a luxuriosa vegetação pendurar-se nas encostas inclinadas, ensaiando um equilíbrio circense que toma o pulso à inebriante paisagem? Que acaso da natureza terá sido pródigo em tal fantástica disposição de montes e acanhados vales?
O casario trepa pela encosta acima, deixando o Funchal entregue ao suave Atlântico que se depõe, em êxtase, assim que beija as rochas negras dispostas num arremedo de praia. Há lugares onde a terra parece ter sido esculpida por deuses com comiseração das gentes sedentas de um sítio para morar. As casas enfeitam os alcantilados que morrem onde começam os primeiros poros do cimento que dão corpo ao casario. Dir-se-ia: os habitantes, acaso o queiram, não precisam de ir longe em demanda de um precipício. A natureza madeirense foi generosa.
É nas entranhas da ilha, onde as estradas se desmembram em curvas tortuosas, trepando inclinações insólitas, que se escondem as paisagens mais cruelmente belas. Os precipícios acolhem arvoredo em equilíbrio precário. Dir-se-ia, como é possível terem nidificado árvores naqueles planos inclinados, as raízes fundas até encontrarem solo firme oferecendo alicerce que as protegem contra a ira dos elementos? Mais alto, quando o ar se torna rarefeito, perto do tecto da ilha, a vegetação ausenta-se. Ficam à mostra os promontórios descarnados, as arestas avivadas como se fosse preciso mostrar que em dias de tempestade os ventos arrepiam os cumes, levando com eles fragmentos das rochas que sucumbem ao vendaval. E se tão depressa os montes sobem ao cume, depois do vértice segue-se uma descida alucinante que esburga um abismo que não parece parar em lado algum. Lá onde a ilha tem o seu tecto, em dias de bonança, e se não houver um lençol de nuvens a obnubilar a paisagem inferior, alcançam-se as duas costas da ilha.
A norte, os altos promontórios desfazem-se num abismo colossal que finda no mar. Não há degraus que temperem a queda na costa, não há aviso que predisponha os aventureiros à cautela de quem perde o passo no precipício se for distraído. Que imagem feérica não alcançarão os navegantes que se aproximem da ilha pelos mares trazidos pelo vento do norte: um maciço de rocha enfeitado pelo verde viçoso da vegetação exótica, um couraçado inerte ali no meio do imenso oceano. A rudeza dos elementos cerceia as expectativas de uma paisagem temperada. Não há areia – ou a pouca que há, é de um tom escuro que assusta o mais temerário dos veraneantes. Não há inclinações amenas. Só uma tremenda correria dos montes, como se tivessem pressa em chegar às alturas onde o oxigénio se rarefaz. Urgindo as alturas mais elevadas para se despirem de uma vegetação luxuriante que se lhes cola, pegajosa.
Tudo é exagero. Uma paisagem embriagada pelos contrastes. Não há, naquela ilha, lugar ao repouso a um sussurro enquanto os pés se demoram num lugar plano. Não há lugares planos. Apenas a excessiva paisagem à qual se empenha um despojado enamoramento. Os olhos, entretanto, viajaram. Tiveram que se despedir da ilha, deixaram de ser seus testemunhas. Avivam-se enquanto se detêm, apesar de cerrados sobre si mesmos, nas paisagens retratadas no alfobre das lembranças. Da ilha que merece ser esquadrinhada em demanda dos segredos mais escondidos.

29.11.10

Medo da água têm os gatos


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Uns americanos apresentaram uma teoria que desaconselha o banho diário. Faz mal, dizem eles. E não é necessário. Eis o raciocínio que prova a inutilidade do banho de todos os dias: dantes, quando os nossos avós e bisavós e por aí adiante trabalhavam na terra, é que o banho era um imperativo de todos os dias. Agora que somos modernos, citadinos e temos trabalhos sedentários, para que vamos entregar a pele e o cabelo ao desprazer da água, do sabonete e do champô?
Retrocesso civilizacional? Mais outra campanha dos fundamentalistas do ambiente, agora tão preocupados com a exaustão dos recursos aquíferos do planeta? Ou “este hábito foi criado pelas empresas de produtos de higiene para aumentarem lucros”? (Portanto, mais lenha para a fogueira do infame capitalismo, noutro capítulo da interminável teoria da conspiração que nos faz reféns do grande capital que se abarbata de lucros à custa dos ingénuos consumidores.)
Às vezes, quando meto os pés ao metro, não é agradável sentir o odor corporal alheio de alguém que calhou em estar ali ao lado. Ou olhar de frente para alguém que passa na rua com os cabelos desgrenhados – mas desgrenhados não por ser modismo juvenil, desgrenhados por deles (cabelos) andar ausente a água e o champô. Bem sei que um individualista não questiona as opções dos outros indivíduos. E depois entrávamos naquela infindável discussão sobre as fronteiras da liberdade individual (a minha termina quando colide com a dos outros, esse limite tão volátil). Por cima dessa teórica discussão: incomoda-me o mau cheiro corporal.
Os defensores do banho-quando-lhes-apetece evocam os corpos encardidos de terra dos avós e bisavós que trabalhavam na agricultura para provar que não é necessário o banho diário. Ignoram que os avós e bisavós, mesmo com os corpos encardidos de terra, não eram adeptos do banho diário. Por essa ordem de ideias, como hoje tão pouca gente trabalha na lavoura e somos tantos a viver em cidades supostamente higiénicas e temos trabalhos sedentários, talvez chegasse um banho semanal, vá lá, quinzenal.
Não percebo esta fobia ao banho. Eu não consigo funcionar sem passar o corpo pelo chuveiro a debitar água quente. Retomo aquele assombroso argumento dos trabalhos sedentários que provam a inutilidade do banho diário. Ou seja: não transpiramos no caminho para o trabalho; não suamos as estopinhas em tarefas que exigem mais do corpo; nem da epiderme se libertam suores quando o cansaço do fim do dia transporta o corpo até casa. Dia atrás de dia, os corpos embrulhados nos vestígios do insuportável suor deitam-se nos lençóis que recebem toda a sudação corporal. Imagino como deve ser desagradável um corpo meter-se à cama e sentir o odor pestilento das camadas de sarro que foram sendo deitadas nos lençóis. Haja quem consiga viver numa pocilga.
O imaginário popular convencionou que os gatos é que têm medo da água. Afinal descobre-se que há uns humanos, se calhar muitos humanos, que têm a mesma aversão. O que atesta a injustiça das sentenças lavradas pela pena do povo. Os gatos, uma e outra vez, vítimas da ignorância popular. E o povo, autista, a apontar aos bichos a sua própria propensão para o desasseio. Todavia, a cada um o inalienável direito a escolher a sua higiene. Um dia destes têm que acabar com o estigma da falta de banho, a crer neste movimento que vem lá das Américas. Então, um famoso maestro português já não podia ser motivo de chacota.

26.11.10

Avestruz (Ou: já repararam que FMI é anagrama de “fim”?)


In http://divapoplicious.files.wordpress.com/2010/01/avestruz1.jpg
A avestruz pernalta, covarde, enfia a cabeça dentro da terra. Fica o resto do corpo à mostra, o dorso curvado sobre o solo com a empinada cauda a dar-se ao horizonte. Nem dá conta que pior que meter a cabeça no solo, no alheamento de tudo como se de tudo se alhear houvesse o mister de os problemas por magia solucionar, é deixar a cauda à mostra do horizonte. Que não se queixe, depois, a avestruz. Não se queixe, enquanto permanece com a cabeça enterrada no chão, de sentir uma estranha dor penetrante.
Antes da covardia, a ave pernalta esvoaçava, leviana, com um sorriso imbecil. Com a imbecilidade dos que são inutilmente sobranceiros. É que a avestruz sabia, no seu íntimo, que não havia razões para tamanha sobranceria. A avestruz pernalta admitia as tantas fragilidades que escondia ao enterrar a cachola na terra. Adornava a sua existência com golpes de asa circenses que enfeitiçavam a fauna restante. Só uma fauna pautada pela mediocridade deixara que a medíocre avestruz ocupasse o trono.
Os restantes animais coçavam a cabeça quando viam as correrias desenfreadas da avestruz. Parecia tomada por uma súbita embriaguez que a fazia loucamente correr de um lado para o outro, com as asas vaidosamente abertas a ostentar a penugem esfarelada. Corria e corria, errante. Detinha-se a um canto e desatava a escavar furiosamente, a terra escura vomitada das entranhas do solo pelas suas unhas encardidas. Quando as forças por fim cessavam ficava estática, em pose triunfante, a olhar em redor. À espera da aclamação da fauna restante. O tempo em trânsito era testemunha do decréscimo das ovações. Um atrás do outro, os animais iam-se retirando do palco montado pela avestruz. Fatigados das estrambólicas correrias que terminavam em enigmáticas escavações. Cansados da pose envaidecida da avestruz. Os que se arrependiam percebiam: a avestruz era a coveira do ecossistema.
Em estado de negação, já imersa num universo em que tudo era um paraíso mas só na só delirante, infantil imaginação, a avestruz encontrava refúgio na escuridão do subsolo onde repousava a cabeça. Encontrava refúgio no universo faz de conta que era o subsolo que dava guarida à falaz cabeça. Era o sinal de um apedeutismo que sangrava por cima do ecossistema. Como podia a avestruz convencer os restantes que discernia as soluções na escuridão da cova onde metia a cabeça?
Era a fuga para o abismo. Continuava compenetrada a avestruz na dilecção que lhe julgava ser dedicada pela maioria da fauna. Convencida que quanto mais afundasse a cabeça no subsolo, mais sedimentos encontrava para resolver os dilemas que trouxera ao ecossistema. Passava cada vez mais tempo em autocontemplação na escuridão da cova. Com as nádegas empinadas para cima. Estava mesmo a jeito de uma visitação nada prazenteira de um lascivo forasteiro. Às duas por três, a ossatura da avestruz sentiu um abalo telúrico. E zás, o forasteiro, com a coragem que nenhum indígena se dignara de encontrar, fez aterrar a avestruz dos seus líricos devaneios.
Quando, por fim, a avestruz retirou a cabeça do subsolo, já estava atrelada ao forasteiro. A fauna indígena assistia, resignada, à função. A fauna sabia que o forasteiro tinha tomado o leme na mão enquanto possuía a outrora timoneira avestruz. Sabia que as dores não eram só da avestruz enquanto permanecia atrelada ao forasteiro. Eram pulverizadas pelos demais animais. Nem assim perdiam um sorriso paradoxalmente resgatado – um sorriso porventura amarelo. Ao verem que as dores maiores, essas pertenciam à humilhada avestruz que teimava em esconder a cabeça no chão. Teve a paga que merecia. 

25.11.10

Second skin


In http://esteticafeminina.com/images/peeling.jpg
Andava à procura de um norte. A certa altura, a névoa persistente fê-la parar. Era como se apenas houvesse aqueles centímetros quadrados onde assentavam os seus pés. Por mais que avançasse, o nevoeiro apenas deixava entrever finas gotículas que se desprendiam do nada. O resto era a quase escuridão, os olhos impedidos de verem além da cortina espessa. A desorientação.
Caíra no sono, extenuada. Mas depois os elementos compuseram-se na sua melhor harmonia. À alvorada, um dia intensamente ensolarado, nem vestígios do nevoeiro – nem ao longe. Era como se tivesse acordado para a vida. Para uma nova presença. Tudo lhe aparecia resplandecente diante dos olhos. A existência fervilhava com uma intensidade invulgar. O encantamento preenchia todos os poros, enxugando as gotas de suor até em dias de canícula. Uma sensação de plenitude por dentro. Nem em dias de tempestade os dias interiores deixavam de ser soalheiros. E os olhos eram um santuário desta plenitude interior, um lago imenso que trazia para o rosto um sorriso ímpar.
Mas isso era no tempo do encantamento. Um tempo que se esgota. Sempre. Às serpentes também se muda a pele. O desgaste dos dias repetitivos tinha o lacre das escamas que se soltavam da epiderme. Insistia. Começava os dias na renovação do ânimo que vinha de trás, como se não contassem as escamas soltas que os olhos fingiam não ver. Em vez de as sacudir zelosamente procurava colá-las à pele. Como se fosse possível ressuscitar um corpo morto.
Debaixo da pele defunta há sempre pele em renovação. Uma epiderme que está à espera da revelação. Tanto pode ser a réplica da pele senescente como uma pele nova, embebida na diferença. E pode dar-se o caso que haja duas peles sobrepostas. À medida que as escamas apodreciam e o seu odor putrefacto incomodava, o perfume da segunda pele invadia a casa. Não era um odor refrescante, contudo. Era um perfume – como dizer? – estranho, um refluxo de odores contraditórios, um mar inteiro de ambiguidade.
A certa altura, já resignada, não insistia na impossibilidade de resgatar à vida as sobras apodrecidas de pele. Limpava-as com exuberância. Esfregava a epiderme além dos fragmentos em desprendimento para apressar o envelhecimento fatal de toda aquela pele. Já tinha saudades de uma segunda pele que ainda estava por revelar. Ou talvez a segunda pele que começava a espreitar entre os escombros da pele decadente retomasse uma pele antiga, uma pele entretanto despida.
Subiu a um promontório, a um isolado promontório onde o vento soprasse com a fúria que só é dada a conhecer no púlpito das montanhas. Ao isolado promontório onde ninguém estivesse. Deixou cair as roupas até ficar nua. À espera que o vento, o vento amargo, esfoliasse o resto da pele decadente, da pele que teimosamente se recusava a acompanhar o envelhecimento da que já partira. Ali ficou, de olhos fechados, o tempo necessário até sentir que tudo se renovara.
Olhou as mãos e os braços. As mãos percorreram dos seios ao abdómen. Sentada, acariciou as pernas. Tudo era pele nova. Tudo era regeneração. A menos que a segunda pele não fosse nova; diferente, e essa verdadeiramente segunda, tinha sido a pele de que se desprendera. Afinal debaixo da segunda pele estava a epiderme que sempre conhecera. A segunda pele nem sempre é a segunda pele.

24.11.10

Quem és tu?

In http://www.davidhorvitz.com/if/you.jpg
(...) Porque eu sou uma vida com furibunda melancolia,
com furibunda concepção.
Com alguma ironia furibunda.
Sou uma devastação inteligente.
Com malmequeres fabulosos.
Ouro por cima.
A madrugada ou a noite triste tocadas em trompete.
Sou alguma coisa audível, sensível.
Um movimento.
Herberto Helder, Poemacto II
Bondade e lucidez. Ser genuíno. Os sonhos estremecendo os ossos em sua rigidez. Às portas do encantamento, bater insistentemente. Provar a beleza que escorre da carne, o néctar reinante nas veias que querem parar a sua incandescência. O mundo exterior é uma gélida encenação desinteressante. A caminho do ensimesmamento, os dedos queimam-se na ardência das coisas visíveis. Nas palavras que parecem perdidas numa nebulosa que é o pretérito. De dentro vem um apelo em constância: reaprender? Ou apenas, mas um enorme apenas, que é mudar?
Os alicerces, a base estrutural do ser, são o poderoso movimento impeditivo, a dilacerante resposta àquela interrogação. É como se o corpo andasse permanentemente a ser atirado de um lado para o outro de um navio que se entregou nos braços de uma medonha tempestade. O corpo ensaiando o erguimento, mas o corpo sempre arrastado para o chão molhado pela reincidente gravidade. Como é estranho: desde o molhado chão metálico do navio, a rasante da existência unta-se com um perfume que não é a maresia dominante. Diria: o corpo desarmado, as forças já exangues, e todavia o resplandecente lugar onde foram redescobertas as forças que o trouxeram em triunfante levitação.
A furibunda melancolia. E a furibunda concepção. Em uníssono. A vida que temos, a vida que somos, merece que as coisas sejam tragadas na sua plenitude. Com sofreguidão. Pois o tempo trata de lembrar a sua escassez. De nada servem os esgares que regurgitam a antítese da lucidez. Ou recordar um passado de que os dedos não querem resgate, nem gente sepultada nesse transacto. A devastação inteligente exige o sobressalto do porvir. É nele que se compõem as palavras entregues na sua magia perene. Os olhos cerceiam o seu marejar, enxutos pela ironia furibunda.
Não sou a melancolia entediante, não sou a fúria doentia, ou a ironia mordaz. Há uma concepção porventura inteligente, uma inteligência que tratou de macerar a existência com feridas ainda em cicatriz por encerrar. Uma inteligência que recusa ser um sortilégio. Uma inteligência devastadora. Ou apenas uma inteligência desprezível, subitamente transformada num fardo que arqueia o corpo?
Quero que onde os dedos toquem cesse o veneno deixado. Quero abrir as janelas de par em par para ficar à mostra a bondade. Quero ser um aquário onde apeteça nadar. Quero que das minhas mãos fecundem poemas, um sobressalto constante que agite a existência, dissolvendo a monotonia doentia. E quero ser o que seja, um mar imenso de alguma coisa inteligível. Não importa o resto. Não importam os julgamentos cruéis, as patologias amadoramente pespegadas, as decepções, as atribuições de maus instintos. Ao menos, não sou vítima. A não ser de mim mesmo.
Sou: um promontório exposto à fúria dos ventos agrestes. O peito aberto onde se esmagam as ondas do mar. E a espuma que decanta a nobreza do ser. Uma coreografia sublime com os passos em levitação à medida da sua leveza. Um misterioso mapa com algumas estradas escondidas, estradas ocultadas em demanda da descoberta. Uns olhos que absorvem a intensidade da existência. Uns olhos que deitam cá para fora as encantadoras palavras que são a síntese do ser.

23.11.10

Que interessa o PIB? Viva a felicidade!


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Vinha no Público de ontem: o governo do Reino Unido está empenhado em calcular a felicidade dos súbditos. Está cansado do PIB (produto interno bruto), essa medida tão falível. Já se fala de um novo critério para posicionar os países: a FIB (felicidade interna bruta).
Não é a primeira vez que leio sobre economia da felicidade. As fragilidades do PIB são o ponto de partida dos economistas da felicidade. Parece incontestável que a frieza das estatísticas, a matéria-prima do PIB, esconde factos que estão longe da demonstração do que o PIB pretende demonstrar. É o problema das médias, uma tremenda ilusão estatística. Debaixo do PIB alojam-se os problemas sociais que todos os países têm. Pode haver gente infeliz num país bem situado no campeonato do crescimento económico, porque essa gente vive abaixo do limiar da pobreza. O que sobra é sempre a frieza dos números, dissolvendo a felicidade de quem vive imerso na miséria. Mas, mesmo aí, a miséria limita-se a calcular bens materiais. Ora a felicidade ultrapassa a dimensão material das coisas. A felicidade é sobre pessoas.
Simpatizo com a economia da felicidade. Por mais difícil que seja a tarefa de a calcular. É aqui que se abre a maior das armadilhas: a subjectividade. Um limiar de pobreza pode ser estabelecido com rigor. Mas a felicidade varia tanto de pessoa para pessoa que parece impossível medi-la com alguma objectividade. Por mais que alguém faça o seu melhor para encontrar parâmetros que meçam a felicidade. Como reagem os cientistas se duas pessoas têm comportamentos diferentes perante o mesmo parâmetro?
Tenho a impressão que a maior dificuldade está na fuga à felicidade. Na complexidade da vida moderna que nos transporta, amiúde, para os antípodas da felicidade. Às vezes, parece que mergulhamos de propósito na lama onde acamam as adversidades. Convencidos que o fazemos para melhor sentirmos o significado da felicidade, ou pura e simplesmente sem lhe encontrarmos o porquê. Eis outro óbice à economia da felicidade: a subjectividade coalha na volatilidade do tempo. Hoje posso ser indiferente a um certo acontecimento, por mais generoso que seja para a minha felicidade. Posso não estar sensível a esse acontecimento – ou à sua generosidade. Amanhã, com mais disposição, colho-o para o viveiro da minha felicidade. No primeiro dia, vou dizer que não ando muito feliz. No dia seguinte irradio felicidade. Esta volatilidade impede que a medição dos parâmetros seja objectiva. Prejudica o rigor da economia da felicidade.
Por tentativa e erro – é sugestão. E perseverança e experimentalismo. Apesar das limitações, a economia da felicidade impõe-se. É a alternativa. Na concepção dos inquéritos à felicidade da população deviam ser usadas equipas compostas por peritos de vários saberes. Os inquéritos deviam ser abertos a sugestões dos inquiridos. Melhorados ano após ano. As pessoas deviam ser sensibilizadas para a importância deste novo método. Assim como assim, quem não gosta de ser feliz – ou de pelo menos assim se sentir? E se a medição fosse uma oportunidade para a introspecção (em vez de andarem os deprimidos, ou os que pretensamente o são, a enterrar dinheiro nos divãs de psiquiatras)?
Talvez a objectividade seja o maior entrave à felicidade. A objectividade manda-nos ser reses de um rebanho obediente, cumpridores das regras alinhavadas pelos fazedores da objectividade. Saímos da linha e caem-nos em cima os adestradores da objectividade que aqui rima com cativeiro. A felicidade é ter a liberdade para sentir coisas diferentes perante o mesmo. Não há objectividade que consiga retratar esse amplexo que liberta o espírito para a sua genuína liberdade. Essa liberdade, o principal ingrediente da felicidade.

22.11.10

O filme que associa voto a orgasmo

O voto como orgasmo


In http://4.bp.blogspot.com/_5ks-V5kVvt4/TEYlSWTLz_I/AAAAAAAAA8A/c7sNH1i2upc/s1600/votar.jpg
Quem inventou a parábola foram os jovens socialistas da Catalunha em véspera de eleições regionais. Só faltava mais esta: quererem convencer o eleitor a – usando a linguagem politicamente correcta – não se demitir das suas obrigações cívicas, usando uma comparação que se mete com a intimidade de cada cidadão. É destes tempos, e sobretudo da canga socialista que acredita piamente que a engenharia social consegue melhorar a espécie humana, qualquer pretexto serve para as intromissões no que devia ser reservado à individualidade. Os jovenzinhos socialistas da Catalunha deviam pensar em mudar de ocupação: serem publicitários talvez seja o seu fado.
Todavia, esta verve tropeça em imponderáveis. A começar, como se pede a todo o clero (padres e freiras metidos no mesmo saco) que tratem o voto como se fosse um orgasmo se o clero continua obrigado a um voto de castidade? Os padres e as freiras sabem o que é um orgasmo? E, se sabem porque já o experimentaram (não importa como), são seus frequentadores regulares? Há padres que têm intervenção política. Serão os que, às escondidas da bíblia, têm vida sexual mais intensa?
Por outro lado, este apelo que traz de mão dada o voto e o orgasmo contém algo de onanista. O voto é um acto de privacidade. O orgasmo, quando ultrapassa a individualidade do ser e convoca alguma pluralidade (pelo menos dois) desmente a criativa campanha dos jovens socialistas catalães. Como se pode meter a imagem de um orgasmo no meio do voto se nem sequer nos deixam ir acompanhados para o reservado local onde fazemos a escolha eleitoral? A menos que os jovens socialistas estejam mancomunados com a igreja, que detesta o sexo e, mal por mal, prefere aconselhar o prazer num acto de satisfação individual. Que, afinal, é o retrato da privacidade da mesa de voto. Talvez o clero saiba do que falam os jovenzinhos socialistas.
Os terapeutas sexuais deviam ser chamados às mesas de voto. É que tratar o voto como um orgasmo é arriscado. Primeiro, para os que distorcem a natureza do voto e o acham um dever antes de ser um direito, eis o dilema existencial: e o orgasmo, também é um dever? Tal como o voto, eu pensava que era um direito. Posso estar errado e – quem sabe? – a última invenção da engenharia social dominante é legislar que o orgasmo é um dever. Segundo, há as disfunções sexuais (orgasmos precoces, frigidez) que, se forem trazidas para a mesa de voto e se forem todas somadas no resultado das eleições, possivelmente explicam certos resultados aberrantes. Aqueles que depositam o voto num ápice reflectiram na escolha? E os que ficam hesitantes à frente do boletim de voto, incapazes de escolherem entre os candidatos, quando por fim se decidem fazem-no com lucidez? E aqueles episódios fugazes, com algum álcool pelo meio, que não ajudam à memória dos dias seguintes; há quem vote assim, na lógica do primeiro peixe que vem à rede?
Eu ia dizer que esta metáfora inventada pelas mentes criativas dos jovenzinhos catalães é atroz. Pensando bem, não é. Para quem for abstencionista militante, não é. Aliás, reforça a militância. Como podemos ir a uma mesa de voto, colocar a cruzinha num partido ou num candidato e imaginar, com toda a força possível, que essa escolha se compara aos melhores orgasmos que alguma vez tivemos? Isto é perigosamente debochado. E os candidatos seriam uns e umas grandessíssimos meretrizes. 

19.11.10

Estado de sítio


In http://www.enciclopedia.com.pt/images/NATO.jpg
Cimeira da NATO em Lisboa. Uma cidade sitiada. Os figurões da segurança temem que uns amadores do terrorismo façam detonar bombas, ou que uns endemoninhados disparem balas mortíferas contra os líderes poderosos que voam nas ruas da cidade em automóveis blindados. Há aviões que não aterram a certas horas. Lojas e restaurantes nas largas imediações do local das festividades nem sequer abrem, pois a presença de gente está vedada. Os habitantes da zona têm restrições para sair e entrar em casa. Algures em Lisboa, uma mochila abandonada, uma duvidosa mochila, foi destruída. Não fosse conter uma bomba relógio. Notícia encomendada, ou porventura a mochila lá plantada pelos serviços secretos só para se saber que as polícias estão vigilantes a tudo o que levante a menor suspeita?
A histeria da segurança é insuportável. É como se tivessem metido as liberdades de circulação em banho-maria, as afamadas liberdades de circulação legadas pela União Europeia. Por uns dias, esta terra parece que se auto-suspendeu da Europa.
Nem de propósito, há dias tentava explicar aos meus muito jovens alunos o que tínhamos quando eles não eram nascidos, quando ainda estávamos fora da Europa comunitária. Fazia-lhes espécie como se demorava tanto a atravessar a fronteira. Estavam boquiabertos quando lhes narrei os controlos de identidade e a fiscalização aleatória das malas dos automóveis em busca de contrabando. Ontem disse-lhes: vejam os noticiários e reparem como todos os carros que cá entram são detidos para inspecção de identidade dos passageiros e mais o que vier; dantes era assim.
A atestar pelas notícias, vasculha-se muito para além da identidade dos passageiros. Foram apreendidas navalhas que pouca serventia têm além do escanhoar da barba. Foram apreendidos cartazes contra a NATO. Material com elevado potencial destrutivo, como se sabe. Algumas pessoas foram impedidas de entrar no território porque pertenciam a organizações pacifistas, logo, organizações subversivas. E gente houve que não entrou porque todo o vestuário era de uma cor só: preto. Terão barrado a entrada a jovens com piercings e tatuagens (pois os piercings e as tatuagens são, também, subversivas)?
Esta cimeira arrasta consigo um simbolismo que não se pode ignorar. Por estes dias, tem sido muito difícil entrar no território, o que contrasta com as facilidades que existem para pôr os pés daqui para fora. Alguns diriam que é sinal de que nos tornámos selectivos com quem bate à porta. Faz lembrar aquelas discotecas onde era um cabo dos trabalhos convencer o porteiro a deixar entrar. Uma terra muito concorrida, portanto. Dir-se-ia que somos o epicentro do mundo. Eu diria tudo ao contrário: simbólico é que seja tão fácil fugir daqui, sem que nenhum zeloso agente da autoridade verifique a identidade dos que querem zarpar. Portas abertas para sair, mas portas muito fechadas para entrar. Um convite ao exílio. Em terras mais recomendáveis.
Lisboa está sitiada. Esta terra inteira está sitiada. Por estes dias, o que apetece é contradizer o patético slogan da publicidade oficial que enaltece o turismo indígena: o melhor é ir para fora lá fora. E regressar quando já não houver um cardume de agentes fardados a parar os automóveis na fronteira, passando tudo em revista. Por estes dias, tenho saudades da Europa que se suspendeu por uma temporaneidade que parece eterna. Por estes dias em que Lisboa, e esta terra inteira, está de pantanas.

18.11.10

É insultuoso chamar “mulas” aos transportadores de droga?


In http://images01.olx.com.br/ui/2/03/31/28620231_1.jpg
“Mulas” são os gananciosos que se deixam comprar por uns cobres para trazerem drogas alojadas no estômago de um lado ao outro do mar Atlântico. Às vezes dá para o torto. Os balões que encerram o pó rebentam nas entranhas. Se ainda falta muito tempo para aterrar, as “mulas” morrem acidificadas com o pó estupefaciente a dissolver-se no sangue, carcomendo-o. Outras vezes a elevada tecnologia que ofereceu scanners aos aeroportos detecta os balões como corpos estranhos, anomalias que merecem uma cuidadosa inspecção. A cadeia à espera, uma demorada estadia. Das vezes restantes, as “mulas” defecam e, entre a imundície, resgatam os balões com a droga hermeticamente selada.
Chamar-lhes “mulas” é insultuoso? Depende. Vamos supor que somos humanistas. Gente que respeita toda a gente, quaisquer que sejam as aleivosias que comete, os erros em que teima, a má rês que seja. Até nos crimes mais hediondos há uma escondida justificação que tempera a punição. A condescendência é imperativa, pois o animal humano é intrinsecamente bom. Mas o pior é pôr em gente nomes de animais irracionais. Ainda por cima, há animais de primeira (com pedigree) e animais de segunda, a ralé da fauna associada ao ultraje quando a alguém se pespega esse animal como alcunha. Mula, por exemplo.
Uma mula, se bem me recordo da explicação fornecida na aldeia, é o cruzamento de um cavalo e de uma burra. Apesar de serem animais aparentados, a voz popular considera a mula uma aberração. Como a mula descende de uma burra, fica visível a conotação depreciativa quando a alguém se chama “mula”. E as mulas são bestas de carga. Bestas. Ora, diriam os ofendidos humanistas, é indigno de um humano chamar besta a outro humano. Mesmo que os transportadores de droga carreguem, não no dorso como as mulas, uma mercadoria.
Mudamos de lente para interpretar o caso através dos defensores dos direitos dos animais. Também abespinhados, protestam contra a aviltante utilização de um animal para pôr uma actividade a jeito da censura social. É um abuso usar, sem sequer pedir emprestado ao bicho, o nome da mula para atirar os correios de droga para os braços da humilhação social. Protestam contra o apetite antropocêntrico da espécie humana. Que usa os animais como se de coisas se tratassem.
Ainda há uma terceira leitura. A hipócrita censura social é a culpada. É ela que admite dois pesos e duas medidas na punição legal das drogas. Há algumas, socialmente toleráveis, que o são por inundarem os cofres públicos de impostos (tabaco, álcool). As demais são perseguidas, entre a moderação e a impiedade dependendo dos lugares, dependendo se forem duras ou leves. São drogas, com a carga negativa que a semântica e o sentir social atribuem à palavra. Ainda que as legalizadas também o sejam – drogas –, perdendo a carga negativa do substantivo só por serem legais. Ora, quem arrisca a vida ou a liberdade para transportar estupefacientes alojados nas vísceras é a vítima da hipócrita censura social. Vidas seriam poupadas, e existências seriam economizadas à privação da liberdade, se as drogas o não fossem. Ou se, ao menos, todas elas fossem legalizadas.
Só que, nessa altura, os dementes que se prestam a serem “mulas”, por ganância ou só por necessidade de embolsar uns cobres, deixavam de ter um negócio. 

17.11.10

Nos interstícios das sombras


In http://um-buraco-na-sombra.netsigma.pt/fotos/76/noche_en_sombras.jpg
A alvorada chega, brumosa, repleta de uma magia incandescente. Por todo o lado, o chilrear dos matinais pássaros enche o silêncio com uma alegre cantoria. Se o olhar fitar as árvores com paciência consegue discernir as gotas de orvalho que escorrem dos galhos. As ruas quase desertas convidam os pulmões a gritarem sem peias, em depuração interior. A gente ainda estremunhada não cuidaria de se incomodar com o ciciar de um possível grito escutado para lá das persianas ainda corridas.
Para os lados do mar, um sossego magistral. O vento, na sua ausência, compôs um mar temporão. Um chão de água mansa onde apetece levitar, arremetendo mar adentro até os olhos se virarem para trás e contemplarem a cidade que desce até beijar o areal. Os olhos veriam um majestoso alcantilado de casario ainda adormecido na penumbra da madrugada que se despede, as luzes dos lampiões como faróis que não deixam esquecer que a cidade pertence àquele sítio. Então os pés em levitação sobre o mar iriam em imaginária demanda pelas quatro partidas do mundo. Nem que continuassem em terra, firmes, e apenas o lado de cá dos olhos fechados se imaginasse num lugar longínquo. Como se houvesse necessidade de uma higiénica distância. Como se importasse fugir.
O corpo, por mais que a imaginação o importune, não desliga. As levitações propícias são um ardil. Uma anestesia trapaceira. As sombras que atemorizam, um engodo para a anestesia dos sentidos. Onde levam essas sombras senão a lugar algum? Ou às portas enferrujadas onde as mãos se ensanguentam de tanto as empurrarem, sem saberem, por mais que teimem, o que vão achar se derrotarem a rigidez das portas. E se estiver um imediato precipício logo que os pés se puserem do lado de lá da porta?
O jogo de sombras contém os segredos que resguardam os êxtases. Nas dobras das sombras, ou nas esquinas dos jogos de espelhos que se desmultiplicam, sobressaltam-se os sentidos com as cores em surpreendente revelação. Ah, é nas entrelinhas das sombras que se acham as candeias que alumiam tudo à frente. Ah, quando o corpo mergulha na profundidade das sombras e aí encontra a claridade das cores num amplexo vivificante, os dias preenchem-se de significado.
É quando o dia na sua caminhada emoldura a brumosa manhã que se faz perene, pautando a suspensão do tempo. As pessoas prosseguem no passo apressado e, todavia, as gotas de orvalho continuam a regurgitar das ramagens das prodigiosas árvores. A alvorada que se demora não impede o bulício da cidade, o trânsito caótico, o ruído implacável que suplanta o chilrear dos pássaros. A apressada gente, por uma vez, traz consigo um olhar claro, um olhar carregado de um sorriso que se esconde da face. E não se vêem mendigos, como se a pobreza tivesse sido dissolvida.
Na alvorada das sombras desvela-se uma cidade desconhecida. O apogeu do dia. Tão cheio de magia que as escassas pessoas no meio da manhã húmida e fresca falam-se como se conhecessem desde a antiguidade do tempo. Imersos em tamanha cumplicidade que até os estranhos se encenam gente conhecida de há muito. Os segredos, ah!, os segredos, estão nos interstícios das sombras. Lá, no meio das páginas amarelecidas, onde os dedos descobrem os segredos escondidos entre duas páginas teimosamente coladas, o manancial do porvir.

16.11.10

Um adorável rebate de consciência


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Ainda dizem que este é um mundo desgraçado, sem remissão possível. Enxameado de gente má. Há alturas em que se impõe varrer as nuvens negras que obstruem o horizonte. É que, lá atrás, depois das nuvens obliteradas, está um dia soalheiro, as ruas todas cheias de gente sorridente, generosidade que campeia a rodos, todas as almas embebidas numa bondade incorrigível.
Andar com um olho atento ao mundo nem sempre é uma tarefa deprimente. Às vezes há ilhas de encantamento. Ilhas não direi como as que foram cantadas por Camões (que essas atiram para a lascívia, e não é a lascívia que me traz hoje aqui), mas ilhas com uma flora exuberante, cheias de um perfume que anestesia. Como se lá fora não houvesse um único problema que merecesse razão para o sobressalto.
O mote: um meliante rouba a carteira de uma senhora perto de Famalicão e depois tomou-se de remorsos. Pegou no telemóvel da vítima e, imerso em mui cristão arrependimento, telefonou-lhe para combinar a repristinação do furto. Nessa altura, já estava a vítima na urgência do hospital às voltas com um achaque – diga-se, outra repercussão do crime cometido. Não interessam as bolandas da historieta. Eis o epílogo: o arrependido criminoso deixou a carteira trinta quilómetros mais tarde, com a indicação das coordenadas para o seu achamento. Esqueceu-se de deixar o dinheiro que estava acomodado no interior da carteira, mas isso, digo eu, é um pormenor insignificante.
Falta saber se as autoridades competentes vão instruir um processo de averiguações. Acho uma tremenda injustiça. Está bom de ver, a senhora teve um achaque e foi socorrida no hospital – e ele há maior dano que os males de saúde? Ainda assim, continuo a defender a complacência para o fracassado meliante. Adivinho que seja temente, muito temente às divindades que prometem um paraíso celestial na hora do julgamento final. Seria desempregado de longa duração, pois se fosse daqueles gatunos profissionais (na versão tradicional do bom malandro que cultiva a preguiça, ou na versão moderna do agarrado à heroína que precisa de uns biscates criminosos para manter o vício), não era acossado pelo arrependimento.
A consciência ainda conta. Este é um dia que já mereceu ter nascido. Um dia glorioso. Os meirinhos da moralidade ficaram encantados com a historieta. Suponho que os sacerdotes e os acólitos que rabeiam as virtudes da santa igreja estão aos pulos de contentamento. Pensando com os seus botões: como a religião que professam, e só ela, coagiu as dores de consciência do falhado gatuno. Deviam demorar-se na reflexão antes da algazarra: não terá o temente católico sido assaltado por dores de consciência, diria, oportunistas? Saberá que o deus que consagra tem tanto de bondoso para os que merecem a bondade, como de castigador para os que se desviam das virtudes ensinadas no catecismo?
Mas isso não interessa. Ao pé do nobre acto de arrependimento do (para a classe de gatunos) ultrajante gatuno, todas as considerações metafísicas são insignificantes. Que haja mais dias destes. Que se levantem com uma aura fresca, uma luz clara a espreitar entre os galhos das árvores de onde escorrem umas tímidas gotas de orvalho. Que haja mais dias destes, em que a bondade transpira entre os poros do arrependimento. E que nos cheguem, com mais abundância, notícias encantadoras como esta. Que mal aconselhe os jornalistas: se acaso elas não acontecerem, inventem-nas só para deixarmos um sorriso plantado no rosto.

15.11.10

Excessivo


In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjVMkseeEZ-5stJuGQG6s5NsX7UVTDUkvZwH1aSWUsaXa9lcxLpeMHWvau5xMr4Sv0XmNkJBxoVNz3eE8cqmONKLyu0enNns4rW5JV04xtlmdQrtXB3E8mgixATfLRpNRiPw427/s400/cabora+bassa.JPG
Radical. Ou esta incapacidade: a de trazer a existência na companhia da moderação. Uma pulsão incontrolável para abrir as comportas e deixar passar uma volumosa torrente de água espumosa que se esmaga contra o peito. O caudal não escorre com a insignificância estival, não é um fio de água que se vaza, quase imperceptível, pelo leito desnudado. Tudo se compõe como as escarpadas montanhas que se acotovelam numa paisagem indomável.
De uma certeza estou tomado: se há mister que não conseguia abraçar era o de diplomata. O que é paradoxal, pois dizem que abuso da racionalidade. É essa racionalidade que se entrega no regaço da excessiva forma de ser. Uma racionalidade excessiva. Ou a interiorização de que as coisas derramam as suas consequências, que não podem ficar à espera de serem depuradas ao cabo de muito tempo de espera. Não gosto das meias-tintas. Não gosto de virar o rosto ao que vem de frente, aos ares desagradáveis que ocasionalmente pontuam a existência. A esses ares, dou a cara. De frente. Arremeto contra eles. E se há cicatrizes por cauterizar, prefiro expô-las aos elementos, ao frio e à chuva que os mantêm abertos, se preciso for. Forçar epílogos contra o que destilam as veias é um insulto à espontaneidade do ser. E tal como fujo das meias-tintas, detesto fazer de conta.
Também me avisam que às vezes os actos ganham uma mácula irreversível. E que isso devia temperar os excessos por onde transito. A certa altura – advertem – é como me sentisse um animal preso numa armadilha. Abraseado para me libertar da prisão antes que chegue o fautor da armadilha e me reserve destino incerto. Contraponho: se esta cilada é o preço para a libertação de outro aprisionamento, que venham essas maravilhosas dores.
A ausência de moderação adorna uma permanente tempestade existencial. É como se o mar andasse constantemente revolvido, os ventos soprassem sempre com uma fúria espantosa, ou as estradas por onde caminho fossem um interminável, sinuoso carrossel que trepa os inclinados montes e depois os desce com velocidade vertiginosa. Eu digo que é o sal que tempera, o sal que impede a sensaboria que demora os anos; mas o sal que incendeia as cicatrizes ainda em rubor. O sal que derrota o tédio que atraiçoa o tempo: é que ele é tão escasso e, todavia, pela mão da ardilosa monotonia parece que se demora numa interminável passagem.
É de pimenta, e muita, que a vida carece. Ora, a pimenta abomina a moderação, a plácida existência que condescende. Estava para rematar dizendo: abomina a tolerância ao que é intolerável. O tempo trata de amaciar as asperezas. Lima-as como o mar arredonda as rochas onde se esmaga ao compasso das tempestades que o alteram. Enquanto a cura do tempo acalmar os excessos que incensam os dias ardentes, os dias são todos excessivos.
Para o mal e para o bem, todos os dias excessivos. E esse talvez seja o pior dos males. As escolhas perdem-se na ausente lucidez de querer absorver tudo com a excessividade de quem parece atemorizado que o tempo se esgote num próximo amanhã. 

12.11.10

A língua traiçoeira e as figuras tristes


In http://destilandoveneno.files.wordpress.com/2009/12/palhaco.jpg
Por estes dias, enquanto madrugava e os ponteiros do relógio esperavam pela hora do pequeno-almoço servido no hotel, os olhos entretinham-se nos programas matinais de televisão. Sempre à mesma hora, a RTP servia um momento lúdico a intercalar as notícias que vinham com a frescura matinal: uma rubrica sobre como tratar bem a língua. Era colocada uma pergunta e oferecidas duas alternativas de resposta. Depois a repórter saía à rua de microfone empunhado à frente de bocas quase sempre hesitantes, à procura de respostas.
Ontem a dúvida era se se diria (música) “latina-americana” ou “latino-americana”. Grande parte dos anónimos errou. Malditos segundos de fama para os incautos apanhados na armadilha da improficiência linguística. Às tantas, dei comigo a achar esta rubrica uma coisa grotesca. Dizem que a RTP presta serviço público? Só se for para arrebanhar um montão de ingénuos embebidos na douta ignorância da língua nativa para o resto da populaça, confortavelmente instalada do lado de cá do ecrã, soltar gargalhadas de desdém pela ignorância que vem em forma de resposta. Como se, muitos deles, se conseguissem desembaraçar a preceito se fossem teletransportados para o lado de lá do ecrã e sobre eles se esmagasse o microfone em transporte da pergunta.
Pelo meio, uns palhaços de circunstância são atirados para a humilhante posição do aluno que reprova no exame oral. Foi aqui que dei conta da terrível injustiça. Estes anónimos andam anos a fio a desunhar-se para terem os seus fugazes instantes de glória à frente das câmaras da televisão. Quando lhes é feita a vontade, ficam tão mal no retrato. É como ganhar a taluda e não saber onde se guardou o bilhete premiado. Isto não é serviço público. É arranjar carne para canhão, a televisão a triturar as aspirações dos anónimos que preferiam continuar a sê-lo se não tivessem dado a resposta errada.
Já alguém se imaginou mergulhado na humilhante figura de quem se atasca na inabilidade para domar a língua materna? E se, por acaso, àquela hora da manhã um vizinho, daqueles sumamente irritantes, prestava atenção à rubrica enquanto mordiscava uma torrada? Ou se foi o palerma do colega de trabalho, aquele que se traz pela trela da solene irritação, que soltou uma sonora gargalhada ao dar de caras com o inimigo de estimação a estatelar-se numa calinada gramatical? Já imaginámos a quantidade de traumas e o dinheiro despendido em psiquiatras para superar os traumas dos anónimos que o deixaram de ser pelas piores razões? Ou o sublime derriço dos pataratas que descobriram o vizinho ou o colega de trabalho a cair no alçapão da bacorada? Quem sabe se estas degradantes aleivosias da personalidade não dão origem a pancadaria quando o destinatário da chacota tira o casaco para defender a honra pessoal?
Eu proponho a distorção de voz e a ocultação de imagem facial de quem seja abordado na rua e se saia mal na resposta à pergunta sobre como bem tratar a língua. Ninguém caía na humilhação e a RTP continuava a prestar serviço público. A menos que o serviço público tenha recebido nova vestimenta e consista no circo oferecido à turba faminta de se rir a bom rir dos desacautelados – dos provavelmente pelo menos tão iletrados como eles – que caíram na esparrela e ostentaram a improficiência no uso da língua materna. Mas eis que de repente ocorre uma hipótese mais condescendente: é a RTP que paga a uns incautos para fazerem a figura do triste que dá a resposta errada. Perante a consabida elevada qualidade média na utilização da língua materna, não admito outra possibilidade.
Não há quem maltrate a língua. O que há, é palhaços convenientes.

11.11.10

Saudades do porvir


In http://images.google.pt/imgres?imgurl=http://fotos.sapo.pt/sjiPw63k0H3hseLatfws/&imgrefurl=http://lagash.blogs.sapo.pt
Saudades de coisa alguma que tenha pertencido ao tempo que se ausentou. De ausente, esse tempo é uma impossibilidade que adorna as saudades destiladas com um insuportável pesar. Como são inúteis, essas saudades. Não é carência de obnubilar um passado. É a tremenda febre de partir em demanda do tempo por conhecer, de o tornar a quintessência da existência.
Quando a nostalgia crepita e parece aquecer o corpo, há um tempo ultrajado: o único tempo que nos é dado a receber, o tempo que conseguimos agarrar entre os dedos, ainda que todos os segundos que se consomem na sua efemeridade se transformem numa medida do tempo ausente. As saudades são uma medida melancólica que atira os corpos para o torpor. As saudades são como uma anestesia. Um parêntesis que se mete no tempo com medida, uma traição à existência que às vezes tropeça na dilacerante escassez do tempo. Como somos fautores da traição do nosso próprio tempo quando aterra, insidiosa, uma saudade qualquer que resgata o tempo já ausente?
Eu quero é sentir saudades do tempo por revelar. Do minuto seguinte, do dia de amanhã, de todos os amanhãs que estejam reservados. Em toda a sua incerteza. O porvir é a única medida do tempo que interessa. Trazer na cauda da existência um longo rol de saudades atraiçoa a apoteose do tempo vindouro. Ninguém sabe as cores e as formas do tempo que ainda está por vir. E esse é o encorajamento maior para já sentir tantas saudades desse tempo.
Podem dizer que é tão ilusória a saudade de antanho como a saudade do porvir. Até podem denunciar a quimera ainda maior quando é o tempo futuro que alimenta saudades. Dirão: ao menos temos uma medida dos dias que pertencem ao passado. Ao menos, temos uma impressão do que foi esse tempo. Não devemos renegar o tempo que se ausentou, porque é desse tempo que encontramos uma medida tangível. As saudades só têm sentido quando apontam ao tempo de outrora, ao que lá foram momentos de transcendência que arrebatam a melancolia do seu torpor ocasional. Afivelar as saudades do tempo que ainda está por chegar é a maior das impossibilidades. O desconhecimento desse tempo, o penhor da impossibilidade.
Mas é tudo ao contrário. Quem disse que as saudades exigem uma medida concreta do tempo? Quem disse que só temos saudades de pessoas, ou de marcantes acontecimentos, como se as saudades tivessem um sujeito e um predicado necessários? Os olhos da existência fitam o horizonte que desfila à sua frente. É lá que encontram a maré que vai trazer os salpicos, ora adocicados ora tingidos por uma acidez espinhosa, o palco de todos os amanhãs. E, quando chegar um desses amanhãs por que tanto anseiam as extemporâneas saudades, logo parte o sobressaltado espírito em demanda de um outro porvir.
Os dias seguintes estendem a mão à vida. Umas vezes generosos. Outras vezes complacentes, imersos numa infinita paciência que tolera a insensatez que nos atira para as estradas sem retorno. Às vezes são implacáveis, os dias futuros. As únicas saudades que têm serventia são as que interrogam o sentido do porvir. Não esquadrinham um oráculo, ou estas singulares saudades perdiam-se numa espuma vã. O seu norte é a incerteza dos amanhãs que estão por vir. Pelas surpresas, ora reconfortantes, ora dolorosas, que estão por ser conhecidas.
Estas improváveis saudades não são saudades vertidas do avesso. São a homenagem ao tempo único que sobra por conhecer.
(Funchal)

10.11.10

A aventura da educação sexual nas escolas (revisitação de um tema)


http://anjinhoecompanhia.blogs.sapo.pt/arquivo/lindo_areia-thumb.jpg
Não vale a pena repetir que a opção política (ou primeiro pedagógica e só depois política?) de ensinar educação sexual a alunos que irrompem na adolescência é uma polémica interminável. Pelo menos até aos detractores se habituarem à ideia – ou até mudar o governo e, por influência da santa igreja, estas aulas serem encerradas no armário das aberrações.
O que me traz outra vez ao assunto é este texto que as meninas e os meninos têm que ler no contexto da disciplina de educação sexual. É um texto cheio de pedagogia. Diria, ilustrativo. E muito importante. Fala-se de sexo na praia que, como sabemos, é um assunto que interessa aos adolescentes porque nos habituámos a ouvir falar dos efémeros “amores de Verão”. Os tais que ficam “enterrados na areia”. Nem de propósito, o pedagogo de serviço adverte para os perigos das relações sexuais quando há areia metida entre os corpos entregues à sofreguidão lasciva. As meninas e meninos são chamados à atenção para os imponderáveis de ser a areia a enterrar-se juntamente com o órgão masculino reprodutor.
Estou a adivinhar os detractores da educação sexual a pegarem neste texto, usando-o como prova da duvidosa pedagogia adoptada para tratar do assunto. Tenham cuidado: desse modo estão a resvalar para o conservadorismo de sacristia. Também não agrada a ideia de saber que daqui a uns anos a minha filha poderá receber na escola lições básicas de sexualidade. Prefiro que o assunto seja tratado em casa, pois não confio nos dons dos pedagogos que se convenceram que até sexualidade podem ensinar. Um dia destes, com jeitinho, os pedagogos ainda fazem uma perninha no mercado agora ocupado pelos terapeutas sexuais.
Outra vez: é lamentável que as criancinhas tenham aulas de educação sexual. A partir do momento em que isto é irreversível (dentro da contingência do que é irreversível), não adianta dramatizar. Pelo contrário, o assunto traz consigo um lado lúdico. Ao reler aquele pedagógico naco de prosa sobre os cuidados a ter com as relações sexuais que acontecem na praia, uma pessoa não consegue reprimir um sorriso. Aquilo é um compêndio que os humoristas deviam ler de trás para a frente. Humor em estado puro.
Para começar: ou estou desfasado dos acontecimentos, ou suponho que o sexo na praia, sobretudo se for diurno, é coisa rara (se for nocturno, é uma aventura às cegas). É que as praias são frequentadas por muita gente. Cometer a ousadia de fundir dois corpos no areal à frente de olhares escandalizados não é acto que se recomende – e talvez isso é que devia ser ensinado às meninas e aos meninos. Na melhor das hipóteses, os adolescentes que se descontrolarem na praia acabam o dia na esquadra. Na pior das hipóteses, vão parar ao hospital. É não é pelas lacerações resultantes da inoportuna areia (fina ou grossa) que se fez convidada para o acto. Será pela tentativa de linchamento de um bando de pais e mães escandalizados.
Temos que ler o texto com arejamento. A certa altura, o pedagogo adverte que a libidinosa fusão dos corpos dentro de água comporta riscos. Ou porque o salitre da água marinha pode corromper o preservativo; ou porque a gravidade dentro de água é diferente da que estamos habituados, o que pode comprometer “posições tradicionais”. Ora, digam lá se esta prosa não pode ser aproveitada pelo professor de físico-química nas suas aulas?
É uma injustiça que o nome do autor de tão soberba prosa não venha identificado. Sempre o podíamos candidatar a um prémio qualquer – na pedagogia, ou no romance. Ou torná-lo num dos humoristas de referência.
(Funchal)