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Como pode – como pode uma ilha tão pequena albergar tantos e escarpados montes? Numa sucessão interminável, como se a arquitecta natureza estivesse possuída por uma fúria indomável ao esculpir a sua orografia. Como pode a luxuriosa vegetação pendurar-se nas encostas inclinadas, ensaiando um equilíbrio circense que toma o pulso à inebriante paisagem? Que acaso da natureza terá sido pródigo em tal fantástica disposição de montes e acanhados vales?
O casario trepa pela encosta acima, deixando o Funchal entregue ao suave Atlântico que se depõe, em êxtase, assim que beija as rochas negras dispostas num arremedo de praia. Há lugares onde a terra parece ter sido esculpida por deuses com comiseração das gentes sedentas de um sítio para morar. As casas enfeitam os alcantilados que morrem onde começam os primeiros poros do cimento que dão corpo ao casario. Dir-se-ia: os habitantes, acaso o queiram, não precisam de ir longe em demanda de um precipício. A natureza madeirense foi generosa.
É nas entranhas da ilha, onde as estradas se desmembram em curvas tortuosas, trepando inclinações insólitas, que se escondem as paisagens mais cruelmente belas. Os precipícios acolhem arvoredo em equilíbrio precário. Dir-se-ia, como é possível terem nidificado árvores naqueles planos inclinados, as raízes fundas até encontrarem solo firme oferecendo alicerce que as protegem contra a ira dos elementos? Mais alto, quando o ar se torna rarefeito, perto do tecto da ilha, a vegetação ausenta-se. Ficam à mostra os promontórios descarnados, as arestas avivadas como se fosse preciso mostrar que em dias de tempestade os ventos arrepiam os cumes, levando com eles fragmentos das rochas que sucumbem ao vendaval. E se tão depressa os montes sobem ao cume, depois do vértice segue-se uma descida alucinante que esburga um abismo que não parece parar em lado algum. Lá onde a ilha tem o seu tecto, em dias de bonança, e se não houver um lençol de nuvens a obnubilar a paisagem inferior, alcançam-se as duas costas da ilha.
A norte, os altos promontórios desfazem-se num abismo colossal que finda no mar. Não há degraus que temperem a queda na costa, não há aviso que predisponha os aventureiros à cautela de quem perde o passo no precipício se for distraído. Que imagem feérica não alcançarão os navegantes que se aproximem da ilha pelos mares trazidos pelo vento do norte: um maciço de rocha enfeitado pelo verde viçoso da vegetação exótica, um couraçado inerte ali no meio do imenso oceano. A rudeza dos elementos cerceia as expectativas de uma paisagem temperada. Não há areia – ou a pouca que há, é de um tom escuro que assusta o mais temerário dos veraneantes. Não há inclinações amenas. Só uma tremenda correria dos montes, como se tivessem pressa em chegar às alturas onde o oxigénio se rarefaz. Urgindo as alturas mais elevadas para se despirem de uma vegetação luxuriante que se lhes cola, pegajosa.
Tudo é exagero. Uma paisagem embriagada pelos contrastes. Não há, naquela ilha, lugar ao repouso a um sussurro enquanto os pés se demoram num lugar plano. Não há lugares planos. Apenas a excessiva paisagem à qual se empenha um despojado enamoramento. Os olhos, entretanto, viajaram. Tiveram que se despedir da ilha, deixaram de ser seus testemunhas. Avivam-se enquanto se detêm, apesar de cerrados sobre si mesmos, nas paisagens retratadas no alfobre das lembranças. Da ilha que merece ser esquadrinhada em demanda dos segredos mais escondidos.