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“Mulas” são os gananciosos que se deixam comprar por uns cobres para trazerem drogas alojadas no estômago de um lado ao outro do mar Atlântico. Às vezes dá para o torto. Os balões que encerram o pó rebentam nas entranhas. Se ainda falta muito tempo para aterrar, as “mulas” morrem acidificadas com o pó estupefaciente a dissolver-se no sangue, carcomendo-o. Outras vezes a elevada tecnologia que ofereceu scanners aos aeroportos detecta os balões como corpos estranhos, anomalias que merecem uma cuidadosa inspecção. A cadeia à espera, uma demorada estadia. Das vezes restantes, as “mulas” defecam e, entre a imundície, resgatam os balões com a droga hermeticamente selada.
Chamar-lhes “mulas” é insultuoso? Depende. Vamos supor que somos humanistas. Gente que respeita toda a gente, quaisquer que sejam as aleivosias que comete, os erros em que teima, a má rês que seja. Até nos crimes mais hediondos há uma escondida justificação que tempera a punição. A condescendência é imperativa, pois o animal humano é intrinsecamente bom. Mas o pior é pôr em gente nomes de animais irracionais. Ainda por cima, há animais de primeira (com pedigree) e animais de segunda, a ralé da fauna associada ao ultraje quando a alguém se pespega esse animal como alcunha. Mula, por exemplo.
Uma mula, se bem me recordo da explicação fornecida na aldeia, é o cruzamento de um cavalo e de uma burra. Apesar de serem animais aparentados, a voz popular considera a mula uma aberração. Como a mula descende de uma burra, fica visível a conotação depreciativa quando a alguém se chama “mula”. E as mulas são bestas de carga. Bestas. Ora, diriam os ofendidos humanistas, é indigno de um humano chamar besta a outro humano. Mesmo que os transportadores de droga carreguem, não no dorso como as mulas, uma mercadoria.
Mudamos de lente para interpretar o caso através dos defensores dos direitos dos animais. Também abespinhados, protestam contra a aviltante utilização de um animal para pôr uma actividade a jeito da censura social. É um abuso usar, sem sequer pedir emprestado ao bicho, o nome da mula para atirar os correios de droga para os braços da humilhação social. Protestam contra o apetite antropocêntrico da espécie humana. Que usa os animais como se de coisas se tratassem.
Ainda há uma terceira leitura. A hipócrita censura social é a culpada. É ela que admite dois pesos e duas medidas na punição legal das drogas. Há algumas, socialmente toleráveis, que o são por inundarem os cofres públicos de impostos (tabaco, álcool). As demais são perseguidas, entre a moderação e a impiedade dependendo dos lugares, dependendo se forem duras ou leves. São drogas, com a carga negativa que a semântica e o sentir social atribuem à palavra. Ainda que as legalizadas também o sejam – drogas –, perdendo a carga negativa do substantivo só por serem legais. Ora, quem arrisca a vida ou a liberdade para transportar estupefacientes alojados nas vísceras é a vítima da hipócrita censura social. Vidas seriam poupadas, e existências seriam economizadas à privação da liberdade, se as drogas o não fossem. Ou se, ao menos, todas elas fossem legalizadas.
Só que, nessa altura, os dementes que se prestam a serem “mulas”, por ganância ou só por necessidade de embolsar uns cobres, deixavam de ter um negócio.
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