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Ainda dizem que este é um mundo desgraçado, sem remissão possível. Enxameado de gente má. Há alturas em que se impõe varrer as nuvens negras que obstruem o horizonte. É que, lá atrás, depois das nuvens obliteradas, está um dia soalheiro, as ruas todas cheias de gente sorridente, generosidade que campeia a rodos, todas as almas embebidas numa bondade incorrigível.
Andar com um olho atento ao mundo nem sempre é uma tarefa deprimente. Às vezes há ilhas de encantamento. Ilhas não direi como as que foram cantadas por Camões (que essas atiram para a lascívia, e não é a lascívia que me traz hoje aqui), mas ilhas com uma flora exuberante, cheias de um perfume que anestesia. Como se lá fora não houvesse um único problema que merecesse razão para o sobressalto.
O mote: um meliante rouba a carteira de uma senhora perto de Famalicão e depois tomou-se de remorsos. Pegou no telemóvel da vítima e, imerso em mui cristão arrependimento, telefonou-lhe para combinar a repristinação do furto. Nessa altura, já estava a vítima na urgência do hospital às voltas com um achaque – diga-se, outra repercussão do crime cometido. Não interessam as bolandas da historieta. Eis o epílogo: o arrependido criminoso deixou a carteira trinta quilómetros mais tarde, com a indicação das coordenadas para o seu achamento. Esqueceu-se de deixar o dinheiro que estava acomodado no interior da carteira, mas isso, digo eu, é um pormenor insignificante.
Falta saber se as autoridades competentes vão instruir um processo de averiguações. Acho uma tremenda injustiça. Está bom de ver, a senhora teve um achaque e foi socorrida no hospital – e ele há maior dano que os males de saúde? Ainda assim, continuo a defender a complacência para o fracassado meliante. Adivinho que seja temente, muito temente às divindades que prometem um paraíso celestial na hora do julgamento final. Seria desempregado de longa duração, pois se fosse daqueles gatunos profissionais (na versão tradicional do bom malandro que cultiva a preguiça, ou na versão moderna do agarrado à heroína que precisa de uns biscates criminosos para manter o vício), não era acossado pelo arrependimento.
A consciência ainda conta. Este é um dia que já mereceu ter nascido. Um dia glorioso. Os meirinhos da moralidade ficaram encantados com a historieta. Suponho que os sacerdotes e os acólitos que rabeiam as virtudes da santa igreja estão aos pulos de contentamento. Pensando com os seus botões: como a religião que professam, e só ela, coagiu as dores de consciência do falhado gatuno. Deviam demorar-se na reflexão antes da algazarra: não terá o temente católico sido assaltado por dores de consciência, diria, oportunistas? Saberá que o deus que consagra tem tanto de bondoso para os que merecem a bondade, como de castigador para os que se desviam das virtudes ensinadas no catecismo?
Mas isso não interessa. Ao pé do nobre acto de arrependimento do (para a classe de gatunos) ultrajante gatuno, todas as considerações metafísicas são insignificantes. Que haja mais dias destes. Que se levantem com uma aura fresca, uma luz clara a espreitar entre os galhos das árvores de onde escorrem umas tímidas gotas de orvalho. Que haja mais dias destes, em que a bondade transpira entre os poros do arrependimento. E que nos cheguem, com mais abundância, notícias encantadoras como esta. Que mal aconselhe os jornalistas: se acaso elas não acontecerem, inventem-nas só para deixarmos um sorriso plantado no rosto.
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