In http://divapoplicious.files.wordpress.com/2010/01/avestruz1.jpg
A avestruz pernalta, covarde, enfia a cabeça dentro da terra. Fica o resto do corpo à mostra, o dorso curvado sobre o solo com a empinada cauda a dar-se ao horizonte. Nem dá conta que pior que meter a cabeça no solo, no alheamento de tudo como se de tudo se alhear houvesse o mister de os problemas por magia solucionar, é deixar a cauda à mostra do horizonte. Que não se queixe, depois, a avestruz. Não se queixe, enquanto permanece com a cabeça enterrada no chão, de sentir uma estranha dor penetrante.
Antes da covardia, a ave pernalta esvoaçava, leviana, com um sorriso imbecil. Com a imbecilidade dos que são inutilmente sobranceiros. É que a avestruz sabia, no seu íntimo, que não havia razões para tamanha sobranceria. A avestruz pernalta admitia as tantas fragilidades que escondia ao enterrar a cachola na terra. Adornava a sua existência com golpes de asa circenses que enfeitiçavam a fauna restante. Só uma fauna pautada pela mediocridade deixara que a medíocre avestruz ocupasse o trono.
Os restantes animais coçavam a cabeça quando viam as correrias desenfreadas da avestruz. Parecia tomada por uma súbita embriaguez que a fazia loucamente correr de um lado para o outro, com as asas vaidosamente abertas a ostentar a penugem esfarelada. Corria e corria, errante. Detinha-se a um canto e desatava a escavar furiosamente, a terra escura vomitada das entranhas do solo pelas suas unhas encardidas. Quando as forças por fim cessavam ficava estática, em pose triunfante, a olhar em redor. À espera da aclamação da fauna restante. O tempo em trânsito era testemunha do decréscimo das ovações. Um atrás do outro, os animais iam-se retirando do palco montado pela avestruz. Fatigados das estrambólicas correrias que terminavam em enigmáticas escavações. Cansados da pose envaidecida da avestruz. Os que se arrependiam percebiam: a avestruz era a coveira do ecossistema.
Em estado de negação, já imersa num universo em que tudo era um paraíso mas só na só delirante, infantil imaginação, a avestruz encontrava refúgio na escuridão do subsolo onde repousava a cabeça. Encontrava refúgio no universo faz de conta que era o subsolo que dava guarida à falaz cabeça. Era o sinal de um apedeutismo que sangrava por cima do ecossistema. Como podia a avestruz convencer os restantes que discernia as soluções na escuridão da cova onde metia a cabeça?
Era a fuga para o abismo. Continuava compenetrada a avestruz na dilecção que lhe julgava ser dedicada pela maioria da fauna. Convencida que quanto mais afundasse a cabeça no subsolo, mais sedimentos encontrava para resolver os dilemas que trouxera ao ecossistema. Passava cada vez mais tempo em autocontemplação na escuridão da cova. Com as nádegas empinadas para cima. Estava mesmo a jeito de uma visitação nada prazenteira de um lascivo forasteiro. Às duas por três, a ossatura da avestruz sentiu um abalo telúrico. E zás, o forasteiro, com a coragem que nenhum indígena se dignara de encontrar, fez aterrar a avestruz dos seus líricos devaneios.
Quando, por fim, a avestruz retirou a cabeça do subsolo, já estava atrelada ao forasteiro. A fauna indígena assistia, resignada, à função. A fauna sabia que o forasteiro tinha tomado o leme na mão enquanto possuía a outrora timoneira avestruz. Sabia que as dores não eram só da avestruz enquanto permanecia atrelada ao forasteiro. Eram pulverizadas pelos demais animais. Nem assim perdiam um sorriso paradoxalmente resgatado – um sorriso porventura amarelo. Ao verem que as dores maiores, essas pertenciam à humilhada avestruz que teimava em esconder a cabeça no chão. Teve a paga que merecia.
1 comentário:
Eu ainda aguardo a publicação de estudos científicos que expliquem o porquê de os lugares cimeiros (não todos, salvaguarde-se) serem assoberbados por mentecaptos, lobotomizados e outros néscios. Dava para um bom punhado de teses de doutoramento...
É agonizante assistir a esta crónica de uma morte anunciada.
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