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Por estes dias, enquanto madrugava e os ponteiros do relógio esperavam pela hora do pequeno-almoço servido no hotel, os olhos entretinham-se nos programas matinais de televisão. Sempre à mesma hora, a RTP servia um momento lúdico a intercalar as notícias que vinham com a frescura matinal: uma rubrica sobre como tratar bem a língua. Era colocada uma pergunta e oferecidas duas alternativas de resposta. Depois a repórter saía à rua de microfone empunhado à frente de bocas quase sempre hesitantes, à procura de respostas.
Ontem a dúvida era se se diria (música) “latina-americana” ou “latino-americana”. Grande parte dos anónimos errou. Malditos segundos de fama para os incautos apanhados na armadilha da improficiência linguística. Às tantas, dei comigo a achar esta rubrica uma coisa grotesca. Dizem que a RTP presta serviço público? Só se for para arrebanhar um montão de ingénuos embebidos na douta ignorância da língua nativa para o resto da populaça, confortavelmente instalada do lado de cá do ecrã, soltar gargalhadas de desdém pela ignorância que vem em forma de resposta. Como se, muitos deles, se conseguissem desembaraçar a preceito se fossem teletransportados para o lado de lá do ecrã e sobre eles se esmagasse o microfone em transporte da pergunta.
Pelo meio, uns palhaços de circunstância são atirados para a humilhante posição do aluno que reprova no exame oral. Foi aqui que dei conta da terrível injustiça. Estes anónimos andam anos a fio a desunhar-se para terem os seus fugazes instantes de glória à frente das câmaras da televisão. Quando lhes é feita a vontade, ficam tão mal no retrato. É como ganhar a taluda e não saber onde se guardou o bilhete premiado. Isto não é serviço público. É arranjar carne para canhão, a televisão a triturar as aspirações dos anónimos que preferiam continuar a sê-lo se não tivessem dado a resposta errada.
Já alguém se imaginou mergulhado na humilhante figura de quem se atasca na inabilidade para domar a língua materna? E se, por acaso, àquela hora da manhã um vizinho, daqueles sumamente irritantes, prestava atenção à rubrica enquanto mordiscava uma torrada? Ou se foi o palerma do colega de trabalho, aquele que se traz pela trela da solene irritação, que soltou uma sonora gargalhada ao dar de caras com o inimigo de estimação a estatelar-se numa calinada gramatical? Já imaginámos a quantidade de traumas e o dinheiro despendido em psiquiatras para superar os traumas dos anónimos que o deixaram de ser pelas piores razões? Ou o sublime derriço dos pataratas que descobriram o vizinho ou o colega de trabalho a cair no alçapão da bacorada? Quem sabe se estas degradantes aleivosias da personalidade não dão origem a pancadaria quando o destinatário da chacota tira o casaco para defender a honra pessoal?
Eu proponho a distorção de voz e a ocultação de imagem facial de quem seja abordado na rua e se saia mal na resposta à pergunta sobre como bem tratar a língua. Ninguém caía na humilhação e a RTP continuava a prestar serviço público. A menos que o serviço público tenha recebido nova vestimenta e consista no circo oferecido à turba faminta de se rir a bom rir dos desacautelados – dos provavelmente pelo menos tão iletrados como eles – que caíram na esparrela e ostentaram a improficiência no uso da língua materna. Mas eis que de repente ocorre uma hipótese mais condescendente: é a RTP que paga a uns incautos para fazerem a figura do triste que dá a resposta errada. Perante a consabida elevada qualidade média na utilização da língua materna, não admito outra possibilidade.
Não há quem maltrate a língua. O que há, é palhaços convenientes.
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