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Andava à procura de um norte. A certa altura, a névoa persistente fê-la parar. Era como se apenas houvesse aqueles centímetros quadrados onde assentavam os seus pés. Por mais que avançasse, o nevoeiro apenas deixava entrever finas gotículas que se desprendiam do nada. O resto era a quase escuridão, os olhos impedidos de verem além da cortina espessa. A desorientação.
Caíra no sono, extenuada. Mas depois os elementos compuseram-se na sua melhor harmonia. À alvorada, um dia intensamente ensolarado, nem vestígios do nevoeiro – nem ao longe. Era como se tivesse acordado para a vida. Para uma nova presença. Tudo lhe aparecia resplandecente diante dos olhos. A existência fervilhava com uma intensidade invulgar. O encantamento preenchia todos os poros, enxugando as gotas de suor até em dias de canícula. Uma sensação de plenitude por dentro. Nem em dias de tempestade os dias interiores deixavam de ser soalheiros. E os olhos eram um santuário desta plenitude interior, um lago imenso que trazia para o rosto um sorriso ímpar.
Mas isso era no tempo do encantamento. Um tempo que se esgota. Sempre. Às serpentes também se muda a pele. O desgaste dos dias repetitivos tinha o lacre das escamas que se soltavam da epiderme. Insistia. Começava os dias na renovação do ânimo que vinha de trás, como se não contassem as escamas soltas que os olhos fingiam não ver. Em vez de as sacudir zelosamente procurava colá-las à pele. Como se fosse possível ressuscitar um corpo morto.
Debaixo da pele defunta há sempre pele em renovação. Uma epiderme que está à espera da revelação. Tanto pode ser a réplica da pele senescente como uma pele nova, embebida na diferença. E pode dar-se o caso que haja duas peles sobrepostas. À medida que as escamas apodreciam e o seu odor putrefacto incomodava, o perfume da segunda pele invadia a casa. Não era um odor refrescante, contudo. Era um perfume – como dizer? – estranho, um refluxo de odores contraditórios, um mar inteiro de ambiguidade.
A certa altura, já resignada, não insistia na impossibilidade de resgatar à vida as sobras apodrecidas de pele. Limpava-as com exuberância. Esfregava a epiderme além dos fragmentos em desprendimento para apressar o envelhecimento fatal de toda aquela pele. Já tinha saudades de uma segunda pele que ainda estava por revelar. Ou talvez a segunda pele que começava a espreitar entre os escombros da pele decadente retomasse uma pele antiga, uma pele entretanto despida.
Subiu a um promontório, a um isolado promontório onde o vento soprasse com a fúria que só é dada a conhecer no púlpito das montanhas. Ao isolado promontório onde ninguém estivesse. Deixou cair as roupas até ficar nua. À espera que o vento, o vento amargo, esfoliasse o resto da pele decadente, da pele que teimosamente se recusava a acompanhar o envelhecimento da que já partira. Ali ficou, de olhos fechados, o tempo necessário até sentir que tudo se renovara.
Olhou as mãos e os braços. As mãos percorreram dos seios ao abdómen. Sentada, acariciou as pernas. Tudo era pele nova. Tudo era regeneração. A menos que a segunda pele não fosse nova; diferente, e essa verdadeiramente segunda, tinha sido a pele de que se desprendera. Afinal debaixo da segunda pele estava a epiderme que sempre conhecera. A segunda pele nem sempre é a segunda pele.
1 comentário:
é um regresso a casa, olhando-a com a mesma inocência com que se de lá saiu...
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