24.11.10

Quem és tu?

In http://www.davidhorvitz.com/if/you.jpg
(...) Porque eu sou uma vida com furibunda melancolia,
com furibunda concepção.
Com alguma ironia furibunda.
Sou uma devastação inteligente.
Com malmequeres fabulosos.
Ouro por cima.
A madrugada ou a noite triste tocadas em trompete.
Sou alguma coisa audível, sensível.
Um movimento.
Herberto Helder, Poemacto II
Bondade e lucidez. Ser genuíno. Os sonhos estremecendo os ossos em sua rigidez. Às portas do encantamento, bater insistentemente. Provar a beleza que escorre da carne, o néctar reinante nas veias que querem parar a sua incandescência. O mundo exterior é uma gélida encenação desinteressante. A caminho do ensimesmamento, os dedos queimam-se na ardência das coisas visíveis. Nas palavras que parecem perdidas numa nebulosa que é o pretérito. De dentro vem um apelo em constância: reaprender? Ou apenas, mas um enorme apenas, que é mudar?
Os alicerces, a base estrutural do ser, são o poderoso movimento impeditivo, a dilacerante resposta àquela interrogação. É como se o corpo andasse permanentemente a ser atirado de um lado para o outro de um navio que se entregou nos braços de uma medonha tempestade. O corpo ensaiando o erguimento, mas o corpo sempre arrastado para o chão molhado pela reincidente gravidade. Como é estranho: desde o molhado chão metálico do navio, a rasante da existência unta-se com um perfume que não é a maresia dominante. Diria: o corpo desarmado, as forças já exangues, e todavia o resplandecente lugar onde foram redescobertas as forças que o trouxeram em triunfante levitação.
A furibunda melancolia. E a furibunda concepção. Em uníssono. A vida que temos, a vida que somos, merece que as coisas sejam tragadas na sua plenitude. Com sofreguidão. Pois o tempo trata de lembrar a sua escassez. De nada servem os esgares que regurgitam a antítese da lucidez. Ou recordar um passado de que os dedos não querem resgate, nem gente sepultada nesse transacto. A devastação inteligente exige o sobressalto do porvir. É nele que se compõem as palavras entregues na sua magia perene. Os olhos cerceiam o seu marejar, enxutos pela ironia furibunda.
Não sou a melancolia entediante, não sou a fúria doentia, ou a ironia mordaz. Há uma concepção porventura inteligente, uma inteligência que tratou de macerar a existência com feridas ainda em cicatriz por encerrar. Uma inteligência que recusa ser um sortilégio. Uma inteligência devastadora. Ou apenas uma inteligência desprezível, subitamente transformada num fardo que arqueia o corpo?
Quero que onde os dedos toquem cesse o veneno deixado. Quero abrir as janelas de par em par para ficar à mostra a bondade. Quero ser um aquário onde apeteça nadar. Quero que das minhas mãos fecundem poemas, um sobressalto constante que agite a existência, dissolvendo a monotonia doentia. E quero ser o que seja, um mar imenso de alguma coisa inteligível. Não importa o resto. Não importam os julgamentos cruéis, as patologias amadoramente pespegadas, as decepções, as atribuições de maus instintos. Ao menos, não sou vítima. A não ser de mim mesmo.
Sou: um promontório exposto à fúria dos ventos agrestes. O peito aberto onde se esmagam as ondas do mar. E a espuma que decanta a nobreza do ser. Uma coreografia sublime com os passos em levitação à medida da sua leveza. Um misterioso mapa com algumas estradas escondidas, estradas ocultadas em demanda da descoberta. Uns olhos que absorvem a intensidade da existência. Uns olhos que deitam cá para fora as encantadoras palavras que são a síntese do ser.

3 comentários:

Jaime Piedade Valente disse...

Ou seja: não sabe quem é. No fundo, ninguém sabe. Mas a alguns custa mais reconhecê-lo que a outros.

Vanessa, a Mãe Possessa disse...

Caríssimo Jaime, lá estão vocês a tentar catalogar tudo!! Cada um de nós não é categoricamente isto ou aquilo. Cada ser simplesmente é, ponto!
Torna-se impossível definir toda a exuberância de um ser humano. E ainda bem que assim o é. Cada um de nós se revela uma caixa de Pandora, numa incitação constante ao pecado de nos abrir, de nos descobrir.
Se esta não é uma das melhores delícias terrenas, que me cale para sempre...

V.

PVM disse...

"Cada um de nós se revela uma caixa de Pandora, numa incitação constante ao pecado de nos abrir, de nos descobrir." Sublime! Como em poucas palavras se sintetiza tanto sentir. Muito obrigado!