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Pôr as mãos à obra. Arregaçar as mangas, meter ao pescoço o avental e interrogar a criatividade em visitação momentânea. Congeminar os ingredientes das iguarias que passam diante dos olhos em projectadas pinceladas. Abrir a dispensa e deixar que os olhos se passeiem pelas prateleiras, tirando aquele ingrediente daqui, um outro lá de cima, uma especiaria escondida ali no canto. Os ingredientes são empilhados em cima do balcão enquanto a conversa escorre, entrecortada por dois goles no copo de vinho.
Trocam-se impressões sobre o menu. Ou impressões sobre o que quer que venha à conversa – a actualidade, um pontual desafio profissional, as tão complexas relações humanas, uma angústia familiar, ou apenas uma deriva existencial que é consumição maior. Mas depressa as impressões se desviam para a composição dos pratos que vão ser amesendados. Sobre as melhores formas de os confeccionar. Arrisca-se a veia inventiva; uma variante à receita tradicional, para incorporar alguma imaginação que se derrama na originalidade emprestada à iguaria. “E se em vez de canela usássemos cardamomo?”, surge a interrogação à medida que se desbastam os ingredientes antes de emergirem em fogo brando.
Os aromas contagiam-se da cozinha para o resto da casa. Chamam mais gente à cozinha. A certa altura, a cozinha já é pequena. As conversas inspiram-se na coreografia de aromas que tomam conta do espaço. Um cozinheiro afadiga-se à volta do tacho onde uma juliana de legumes marina num estufado incensado por conhaque e cardamomo, os legumes que serão a cama onde vão repousar lombos de rodovalho embebidos em sumo de lima e mel de rosmaninho. Ao lado, outro cozinheiro trata das minúsculas, redondas batatas que vão receber um tratamento caramelizado antes de se enfeitarem ao lado do peixe deitado na cama de legumes. A luxúria do momento gastronómico traz a necessidade de um vistoso empratamento. Naquela noite, até os olhos se engalanaram com o epicurismo gastronómico.
As mãos já tratavam das entradas que iam acamar o estômago para a divinal experiência culinária. Umas vieiras arrancadas à concha, embrulhadas num rolo de entremeada fumada e abraçadas a queijo chèvre. Depois de recebido o calor do microondas pelos instantes necessários para tostar o bacon e passar a tenra carne das vieiras, o empratamento final com uma emulsão de azeite, alho, coentros e alcaparras reduzida a puré. Nesta altura, os aromas tão diferentes em atropelo constante já não deixavam distinguir o aroma dominante. Por vezes, era possível discernir o adocicado travo dos coentros, entretanto suplantado pelo inconfundível cheiro do alho – mas isso podia ser pelo alho entranhado nas mãos.
Faltava a sobremesa. Um cheesecake de chocolate branco e queijo mascarpone deitados numa base de bolachas de manteiga trituradas com nozes de pécan, encimado por um molho feito com ruibarbo, canela e gengibre, as especiarias diligentemente adicionadas na dose certa. Ao lado, um outro conviva compõe o cesto dos pães, o prato com as azeitonas emulsionadas em diversas caldas e a vistosa tábua de queijos. Outro tratou de escolher os vinhos e de decantar as garrafas, apurando a científica tarefa de os colocar à temperatura certa com a ajuda do termómetro para vinhos.
De um salto só, no restolho do repasto sobrou um amontoado de pratos, copos e talheres à espera de entrarem na máquina de lavar louça. E o cansaço. Um cansaço que enche por dentro, com um amplexo de sensações indescritíveis. A gastronomia, fora apenas um pretexto.
4 comentários:
Quanto a mim, o melhor bocadinho são mesmo os preliminares. Enquanto se rodeia o fogão e se compõe a mesa, prepara-se a boca para o repasto debicando petiscos, uma coisa aqui, outra ali, ao mesmo tempo que se conversa e se vai molhando a palavra, amiúde. No ar sente-se que está presente um sentimento de expectativa, que muito me anima! É o começo de algo que promete bem-estar e alegria. O apogeu!
Uma vez sentada à mesa, o encanto já não é o mesmo, dá-me a sensação que se entra num período refractário, o começo do fim, por assim dizer!
Quando fui educado, lembro-me bem como me ensinaram a lutar por aquilo que queria e a compreender que nada caía do céu e tudo levava tempo.
Os pais treinavam os filhos a saber esperar, a saber persistir, a aguardar diligentemente a compensação do seu esforço.
Hoje, são poucos os pais que educam segundo este modelo. O critério do ter imprime um ritmo frenético à vida.
Antes, havia tempo para o ritual do tempo, a vontade era formada na resistência.
Hoje, o tempo tem o ritual de cada momento, a vontade é formada no frenesim de cada satisfação.
Antes, o tempo era uma escola, hoje é um embaraço. Antes, a disciplina interior sabia a libertação, pela firmeza que conferia à nossa atitude, hoje, a disciplina interior sabe a escravidão, pelo custo que confere a realização imediata daquilo que queremos.
Nos nossos dias, os pais desmesuram-se em ajudas aos filhos, em apoios, em cursos, em oportunidades, como antes não sucedia.
Mas negligenciam, nesta mímica social estranha de correr para todo o lado, os mais simples valores da correcta formação humana.
Quantos pais hoje falam aos filhos em disciplina? Quantos pais hoje ensinam os filhos a saber esperar?
Resmungamos generalizadamente que há um desencontro entre o que todos querem e o que é possível a todos dar.
Resmungamos, mas não vamos ao fundo da questão.
Como podem os pais de hoje transmitir aos filhos os valores mais preciosos, se eles próprios os abandonaram?
Como podem os pais educar os filhos a saber esperar, se eles próprios abraçaram a lógica imediatista da vida moderna?
Como podem os pais transmitir disciplina aos filhos, se eles próprios perderam os critérios em que a disciplina se funda?
A disciplina, no entanto, é a ferramenta decisiva da vida, como o saber esperar é a atitude própria das grandes realizações.
Como diz M. Scott Park, com alguma disciplina, resolvemos alguns problemas da vida, com total disciplina resolvemos todos os problemas da vida.
Na vida afectiva, não há grandes amores, nem grandes amizades sem disciplina.
Na vida em geral, em todos os aspectos da vida, não há destinos significativos à espera de quem não tem disciplina.
A disciplina olha os problemas de frente e resolve-os.
A disciplina cuida da força de vontade, dispõe-se ao essencial, sabe esperar.
A disciplina aceita a renúncia, o sacrifício, a abdicação — palavras hoje interditas.
A solução dos problemas de Portugal passa por aquilo que cada um de nós souber fazer a este respeito.
Ao ler este comentário anónimo não pude deixar de concordar com ele. Reconheço-me perfeitamente no modelo de educação que refere, e que antigamente passava de pais para filhos. Essa foi a minha educação e está-me tão entranhada que é também essa educação que tenho dado ao meu filho, que nem sempre aceita o que lhe digo. É preciso ter em conta que ele vive numa outra época. Contudo, não mantém essa posição por muito tempo. Lá no mais profundo do seu íntimo ele reconhece, ele sabe ver, que esses valores que lhe transmito são importantes para que se faça uma pessoa que saiba distinguir o importante do acessório.
Mas nem sempre assim pensei. Na idade da minha adolescência revoltei-me e tentei renegar a educação dada pelos meus pais, principalmente pela minha mãe. Achava que me tinham ensinado a ser humilde e honesta e que isso só servia para que os outros se aproveitassem de mim. Olhava em redor e reparava que os que estavam a safar-se bem na vida eram os espertos, que fingem ser uma coisa, e afinal são outra. Estão sempre de atalaia à espreita do menor descuido dos outros para lhes subirem para cima. Todavia, anos mais tarde, compreendi, que o que nos diferencia verdadeiramente dos outros, é a forma como estamos no mundo, que está de acordo com o nosso interior, e eu já não me importo se os outros se safam melhor do que eu. Eu é que sei do que gosto e o que é bom para mim e é nesse sentido que devo viver a vida. Perseguir apenas os meus objectivos, que estabeleço de acordo com o meu sentir e não com os cânones comuns, ou seja, não me apetece andar no mundo, só por ver andar os outros.
Mas, o que aqui me havia trazido foi outro assunto, que no primeiro comentário me esqueci de referir. Quando fala em alho e o cheiro dele entranhado nas mãos, lembrei-me das situações de embaraço que isso nos pode causar, mas há um remédio santo para sanar esse mal. Talvez já o saiba, mas fica aqui registado para quem eventualmente leia este comentário. Pois um remédio eficaz para fazer desaparecer o cheiro a alho das mãos e da faca é colocarmos-las debaixo da água corrente da torneira, sem mais nada, isto é, sem detergente, ou outro produto. Não fica nem o menor vestígio de odor a alho.
Milu:
Começo pelo fim: obrigado pelo truque. Já o conhecia.
Não entendi como este texto sobre um devaneio gastronómico motivou os comentários sobre a educação e a (auto) disciplina.
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