2.11.10

Um amor no fio da navalha

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(Aviso: com bolinha vermelha no canto do ecrã)
Às vezes, longos dias sem se verem, sem sequer se ouvirem pelo intervalo ditado pelo telefone. Uma cumplicidade tremenda; dir-se-ia, telepaticamente gémeas. Amigas inseparáveis. Na antítese física, uma comunhão de espíritos que transcendia a pura amizade. A amizade saltara os seus muros e entrara num terreno onde já havia a pena pesada da censura social. Era um segredo só delas. Um porventura esqueleto no armário, ou o óbice da homossexualidade ainda denegrida pelos costumes dominantes. E, no entanto, não deixavam de se deleitar com o sexo contrário. Não era ambiguidade. Heterossexualidade pela metade, pinceladas bissexuais escondidas da reprovação dos bons costumes.
A tecnologia punha-se ao serviço deste amor carnal feminino. Uma ajuda à telepatia de outrora que convocava as fantasias enquanto o sono não aterrava. A distância já não era obstáculo. A repressão dos sentimentos – ou apenas das pulsões carnais que irrompiam, incontroláveis – já não esbarrava nos quartos esconsos onde derramavam o desejo. Era mais seguro prolongar os feixes libidinosos através da distância geográfica. Até porque tinham deixado de ser casadoiras e construíram família. Assim como assim, a maravilhosa tecnologia curara de dissolver o hiato a um nada.
Nem a família entretanto feita derrotava o irrefreável desejo de se terem nos braços uma da outra. Mas a cautela refreava o desejo. A vida, a maldita vida empenhada às vicissitudes profissionais, tornara escasso o tempo. O pouco tempo sobrante estava destinado às suas famílias. Havia consortes para obsequiar e filhos a desafiarem o axioma da boa mãe. Más mães não se podiam tornar: lá adejavam outra vez as malditas convenções sociais, catastróficas e impiedosas, sobrepondo-se à espontaneidade dos sentimentos e dos impulsos. O progresso resolveu o dilema. A telepatia ganhava contornos visuais bem nítidos. Saciavam-se à distância, nesta forma modernamente telepática, sempre no remanso do lar e quando ninguém pudesse desconfiar dos seus lados ocultos.
As imagens só adulteravam o tacto. Não era possível percorrerem com os seus dedos as formas de cada uma. Em não se podendo acariciar uma à outra, usavam a imaginação enquanto os corpos desnudados passavam no amplexo de cores escaldantes que os feixes traziam uma à outra. Contagiavam-se com a febre recíproca. Gemidos, frases provocatórias, ordinárias por vezes, na estimulação da lascívia. E depois do apogeu, juras de uma amizade eterna. Uma amizade onde macerava um amor reprimido. À distância. Agora que havia responsabilidades familiares, respostas perante a sempre intolerante sociedade (e como ela contava – era a superficialidade a sussurrar à consciência), só à distância.
Tinham um refúgio privativo. Um mundo só delas. O quarto de que só elas sabiam a localização, onde só se entrava depois de franqueado o impenetrável cadeado alojado num esconderijo. Só elas conheciam e partilhavam o refúgio, numa cumplicidade perfeita, em sintonia invejável. Dentro de um segredo firmado a sangue derramado das mãos cortadas pelo punhal que sagrava aquela vida paralela. Havia nelas uma duplicidade maravilhosa. Um tempo e um modo para tirar prazer de ambos os sexos. Mas quando eram elas a alimentá-lo, a cumplicidade era ímpar.
Os tolos em redor, enganados pela omissão da paralela vida, nem sonhavam com a ambiguidade latente. Ingénuos, eram a alcateia de cegos que se entregavam a um festim adulterado.  

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