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A alvorada chega, brumosa, repleta de uma magia incandescente. Por todo o lado, o chilrear dos matinais pássaros enche o silêncio com uma alegre cantoria. Se o olhar fitar as árvores com paciência consegue discernir as gotas de orvalho que escorrem dos galhos. As ruas quase desertas convidam os pulmões a gritarem sem peias, em depuração interior. A gente ainda estremunhada não cuidaria de se incomodar com o ciciar de um possível grito escutado para lá das persianas ainda corridas.
Para os lados do mar, um sossego magistral. O vento, na sua ausência, compôs um mar temporão. Um chão de água mansa onde apetece levitar, arremetendo mar adentro até os olhos se virarem para trás e contemplarem a cidade que desce até beijar o areal. Os olhos veriam um majestoso alcantilado de casario ainda adormecido na penumbra da madrugada que se despede, as luzes dos lampiões como faróis que não deixam esquecer que a cidade pertence àquele sítio. Então os pés em levitação sobre o mar iriam em imaginária demanda pelas quatro partidas do mundo. Nem que continuassem em terra, firmes, e apenas o lado de cá dos olhos fechados se imaginasse num lugar longínquo. Como se houvesse necessidade de uma higiénica distância. Como se importasse fugir.
O corpo, por mais que a imaginação o importune, não desliga. As levitações propícias são um ardil. Uma anestesia trapaceira. As sombras que atemorizam, um engodo para a anestesia dos sentidos. Onde levam essas sombras senão a lugar algum? Ou às portas enferrujadas onde as mãos se ensanguentam de tanto as empurrarem, sem saberem, por mais que teimem, o que vão achar se derrotarem a rigidez das portas. E se estiver um imediato precipício logo que os pés se puserem do lado de lá da porta?
O jogo de sombras contém os segredos que resguardam os êxtases. Nas dobras das sombras, ou nas esquinas dos jogos de espelhos que se desmultiplicam, sobressaltam-se os sentidos com as cores em surpreendente revelação. Ah, é nas entrelinhas das sombras que se acham as candeias que alumiam tudo à frente. Ah, quando o corpo mergulha na profundidade das sombras e aí encontra a claridade das cores num amplexo vivificante, os dias preenchem-se de significado.
É quando o dia na sua caminhada emoldura a brumosa manhã que se faz perene, pautando a suspensão do tempo. As pessoas prosseguem no passo apressado e, todavia, as gotas de orvalho continuam a regurgitar das ramagens das prodigiosas árvores. A alvorada que se demora não impede o bulício da cidade, o trânsito caótico, o ruído implacável que suplanta o chilrear dos pássaros. A apressada gente, por uma vez, traz consigo um olhar claro, um olhar carregado de um sorriso que se esconde da face. E não se vêem mendigos, como se a pobreza tivesse sido dissolvida.
Na alvorada das sombras desvela-se uma cidade desconhecida. O apogeu do dia. Tão cheio de magia que as escassas pessoas no meio da manhã húmida e fresca falam-se como se conhecessem desde a antiguidade do tempo. Imersos em tamanha cumplicidade que até os estranhos se encenam gente conhecida de há muito. Os segredos, ah!, os segredos, estão nos interstícios das sombras. Lá, no meio das páginas amarelecidas, onde os dedos descobrem os segredos escondidos entre duas páginas teimosamente coladas, o manancial do porvir.
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