8.12.10

Acidente cósmico


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Andante pelas ruas da cidade, no usufruto de um invernal, sempre temporário sol. Passam raparigas que irradiam a sua terna jovialidade. Há um moço de recados que desce a avenida, apressado, decerto atrasado. Automóveis que seguem vagarosamente, outros automóveis conduzidos por taxistas apressados. A avó que traz a menina chorosa pelo braço, à bruta. Um gato que escapa por um triz ao mortal atropelamento de um autocarro, numa correria desenfreada de um lado ao outro da avenida. Uma nuvem, também temporária, desimpede a claridade do céu. As pessoas recolhem-se na adivinhação do aguaceiro violento anunciado pela negra nuvem que se avizinha.
Indiferente a tudo isto, estava num talho a tentar limpar a nódoa feita por dejectos lançados das alturas por um qualquer pombo. Puxo atrás a bobine do tempo, para os minutos imediatamente anteriores. Seguia, algo errante, absorto nos meus projectos. Os transeuntes eram apenas gente indiferenciada, como se o seu rosto estivesse distorcido. Os passos cadenciados sulcavam o passeio sujo, as peugadas díspares marcadas no chão de cimento com o lacre enlameado.
Quase ao dobrar a esquina, de frente para o mercado do Bolhão, algo se estatelou na lapela do fato. Uma matéria viscosa, esverdeada e nauseabunda, atingira o casaco à esquerda, bem abaixo da lapela. Tanta fora a pontaria que uma parte da excrescência se alojara dentro do apertado bolso que fica abaixo da lapela. Entrei na primeira loja à mão de semear – um talho. Foram uma simpatia, os senhores talhantes que me deram atendimento, metendo um intervalo na sua azáfama. Souberam logo fazer o diagnóstico do acidente cósmico: “merda de pombo”, disse o mais gordo, enquanto pousava o facalhão que estava a meio do afiamento. O mais velho, na caixa – o único que não envergava farda branca salpicada de sangue dos animais ali trespassados – apressou-se a trazer toalhetes humedecidos. “Se não limpa já isso, fica uma nódoa que lhe estraga a fazenda” – atirou, prestável.
Depois do esfreganço do zeloso talhante, que suou as estopinhas para a fazenda ficar isenta do emporcalhamento do pombo incontinente, os amáveis homens do talho até espelho ofereceram para comprovar como tinham derrotado a ousadia da ave. Por instantes, o talho parecia ter aquelas cabines apertadas onde se experimenta o cabimento das peças de roupa que queremos comprar. Confirmei, olhando ao espelho, e depois fitando, quase como se usasse lupa, que no tecido já não sobravam vestígios da dejecção meticulosamente tombada na apertada reentrância onde o casaco resguarda um bolso. O pombo que fosse bolçar noutro lugar.
Podia interiorizar: que maldita desventura, os ponteiros do destino acertarem, matematicamente, a coincidência entre o pombo em diarreia e a pessoal passagem naquela esquina. Não interessava a náusea escatológica, já nem interessava o quase perecimento da fatiota apessoada. Num ápice, o pensamento apenas dirigido para a conjugação das coincidências. Teria que haver o seu contrapeso. Não podia o acidente cósmico deixar de ser apenas um alçapão cómico.

2 comentários:

Vanessa, a Mãe Possessa disse...

As leis da Física confirmam-no. Veja-se o princípio da conservação da energia e o da conservação do trabalho. O pombo desencadeou toda uma sequência reaccional, sem dúvida. Não é tão romântica quanto o bater das asas de uma borboleta na América do Sul ser capaz de se repercutir num furacão (sempre feminino!) por terras australianas ("efeito borboleta" ou "teoria do caos") mas as consequências do desarranjo do pombo ainda se devem estar a sentir!

PVM disse...

Como isto aconteceu há quatro ou cinco anos, suponho que o pombo já foi desta para melhor...