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Enamorara-se de um piercing na sobrancelha. Sempre dissera: fosse mulher e pespegava um, discreto, na concavidade exterior do nariz. Nunca vira nenhum homem com um adereço ali, contudo. Receava erróneas interpretações acerca da sua sexualidade caso se fosse pioneiro na colocação de um piercing naquele lugar. É que ele importava-se, e não era pouco, com o que os outros pensavam de si, com o que de si diziam. Foi o que o demorou no – para si – afoito acto de deixar falar a estética de que se enamorara.
Um dia houve em que se encheu de coragem. Não cessavam de adejar temores que enxameavam a consciência. Interrogava-se, dilacerava-se com a interrogação: “o que iriam pensar todos – família, amigos, conhecidos, colegas de trabalho – quando o vissem, apessoado como sempre, no contraste com o enegrecido adereço perfurando a sobrancelha esquerda?”
Deitou-se às mãos de um especialista. Não era da perfuração da epiderme que tinha medo. Conhecia-se valente para as dores do corpo. Uma picada simples, um ligeiro ardor à medida que o sangue se soltava da abertura da pele. A costura da ferida seria o utensílio de marfim preto escolhido instantes antes, ao fim de tantas hesitações. Os pequenos furos deixaram de verter sangue assim que o piercing foi aplicado. Hermético, à medida das incrustações na epiderme. O aplicador voltou-se para trás e trouxe um espelho. Ordenou que se soerguesse da marquesa para espreitar o espelho e proferir a sentença que compete ao cliente. Teve um sobressalto: e se ficasse chocado com a imagem abonada pelo espelho? Sossegou-se quando se imaginou na cadeira do cabeleireiro. Assim como assim, também lhe oferecem um espelho para a sentença que se acomete sobre o desempenho da paciente cabeleireira.
Inclinou a cabeça para a direita para que os olhos ficassem ao alcance do adereço. Gostou de ser ver ao espelho. Havia ali um acto estético que lhe enchia as medidas. Naquele momento de intenso orgulho com a sua imagem (por uma vez, a imagem), às interrogações que não cessavam de se esmagar no cérebro só respondia: “o que é que isso interessa?”
Os primeiros dias foram de perplexidade alheia. Não havia quem não ficasse boquiaberto. Logo ele, um exemplo de rectidão, uma virtude de elegância conservadora, logo ele apoderado, só podia ser, por um apopléctico acto para adornar a sobrancelha com um piercing. Um amigo mais franco disparou: “já reparaste que um piercing é, para todos os efeitos, um brinco? E que brincos usam-nos as mulheres?” No trabalho, eram angustiantes os olhares. Nuns casos, de severa reprovação silenciosa. Noutros casos, de embaraço. “Como era possível” – escutou uma conversa na intimidade dos lavabos – “como era possível pessoa tão normal andar com um penduricalho espetado na sobrancelha?” Alguns diagnosticavam uma perturbação de comportamento. Sugeriam o divã de um psiquiatra. Para outros, era um acto de pura provocação.
Continuou indiferente. Não era um acrescento de marfim enegrecido que mudara o que fora. Até que começou a sentir que o julgavam não pelos merecimentos mas pela aparência. “Colide com os costumes”, disse-lhe, com uma voz que misturava paternalismo com censura, um superior hierárquico. Em resposta, disparou com uma pergunta: “há queixas objectivas do meu trabalho?”
O silêncio sepulcral e atrapalhado do chefe foi a resposta desejada. Levantou-se e, com indisfarçável orgulho, desafiou o chefe, e todos os que estivessem acima dele, a não serem intrusos na sua individualidade.
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