2.12.10

Diário de um narcisista incorrigível (I)


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(Na primeira pessoa)
Hoje acordei bem disposto. Adivinhei o sentido do dia antes de descer a persiana: tinha que estar um dia esplendoroso, os raios de sol derretendo a manhã fria. Um dia à medida da minha beleza centrípeta, da aura contagiante que trago comigo. Confirmei-o. Quatro estorninhos vieram pousar no beiral da janela enquanto contemplava a beleza matinal, a personificação da minha existência. Ficaram ali, em êxtase, a olhar para mim. Às vezes convenço-me que podia ser um feiticeiro de animais.
Antes de entrar na banheira onde já repousava um caldo de água quente perfumado com essência de rosas amarelas, demorei-me na matinal autocontemplação através do espelho. A idade não passa por mim. Os muitos cuidados com a pele têm essa serventia. Os mais atentos apressar-se-iam a desmentir a negação dos tempos andantes, apontando para uma ou outra ruga, alguns cabelos grisalhos que começam a aparecer nas frontes, os olhos ainda tisnados depois de uma noite bem dormida. Eu diria que é um envelhecimento de que poucos se gabam. E o que interessa? Se há tarefa que não dispenso pela manhã são os cinco, dez minutos diante do espelho enquanto a água perfumada não abarrota a banheira.
Tive a companhia da loira vaporosa do quinto esquerdo enquanto descia para a garagem. O meu charme irresistível perturbou-a. Soltou discretamente um botão da camisa, deixando a extremidade do soutien de renda, uns curtos milímetros apenas, à mostra. Talvez fosse o calor dentro do elevador, talvez estivesse a insinuar um desejo que entre nós nunca passou do cortês cumprimento matinal. Ruborizou depois de olhar para mim, sucumbindo ao meu olhar mordaz. A marcha do elevador cessou depressa. Despedimo-nos com uma troca de olhares. Um dia destes, um dia destes.
No trânsito tudo estava a preceito. As estradas pouco movimentadas, a música na rádio que parecia ter sido escolhida por mim (ou para mim). Até quando entrei na cidade e chegaram os semáforos tudo parecia estar combinado para os sinais mudarem para verde à minha aproximação. Ainda tinha tempo para um breve café antes de ir para o escritório. A modesta rapariguinha que serviu o café estava com uma lascívia que não lhe conhecia. Até verti o café, perturbado com aqueles olhos que entravam nos meus como se estivessem a suplicar por. O telefone tocou, interrompendo o momento. Precisavam de mim no escritório, com urgência. Um problema que só podia ser resolvido por mim. Despedi-me com um aceno de mão enquanto continuava com o telemóvel no ouvido. Ainda percebi, pelo reflexo do vidro do café, o ar entristecido da rapariguinha.
A manhã foi rotineira. Muitas solicitações. Um cortejo de gente, da empresa e de fora, em visita ao escritório, a desfazer-se em panegíricos. Chegara a hora do almoço. Anotara na agenda três convites para almoçar. Um jornalista sequioso de informações que só eu lhe podia fornecer. O presidente de uma importante empresa multinacional, que me aliciava há mais de dois meses com prebendas irrecusáveis para ir trabalhar para ele. Uma escultural modelo que conhecera, uns dias antes, numa vernissage. Enviei frias mensagens de telemóvel aos três, desculpando-me com afazeres de última hora para o cancelamento dos almoços. Não me saía da cabeça o ar pesaroso da rapariguinha do café enquanto me despedia com um impessoal aceno de mão. Tinha que a compensar. Não ia almoçar a um dos restaurantes da moda. Apareci na lanchonete, sem ela contar.
Senti-lhe os suores frios. Quase deixava cair um prato de sopa que ia servir a um encovado velhinho sentado num canto do estabelecimento. Ah, esta magia que espalho entre as mulheres! Trocámos olhares, entre indiscretos sorrisos reveladores. À saída, deixei ao pé da factura do almoço um papel manuscrito com o número de telemóvel. Mal cheguei ao escritório, tinha uma chamada não identificada. Atendi, eu que não costumo atender números que desconheço. Era ela.
E o dia ainda ia a meio, tão promissor.

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