In http://img106.imageshack.us/img106/5243/chuvakb9.jpg
Os dias predilectos. Já nem sabia quais eram. Às vezes, na monotonia dos dias sucessivamente estéreis, convencera-me que eram os dias de antanho. As refulgentes recordações que enchiam a casa de luz. Porém, de uma luz pífia. Havia naquela luz um engodo que mal se discernia, ou não fosse ela um engodo em revelação tardia. Assim acontece quando o tempo passado apenas se revela na sua projecção futura.
Parecia uma luz clara, branca, a que se infiltrava por todos os poros da casa. Não havia serventia de candeia alguma, pois até a escuridão da noite se iluminava com aquela desassombrada luz. Mas talvez a falácia viesse tingida pelos dedos da lente quebrada, a lente que tornava a luz alva aos olhos transviados. E assim se repetiam os dias da monotonia, aqueles dias em que por mais que estivesse no exterior pareciam acantonados entre as frias paredes da casa. Adulterados pela luz-falácia.
O privilégio da lucidez é porventura outro logro. Afinal, quando podemos dizer que estamos lúcidos? E isto importa, porque só quando nos achamos nos braços da fria perspicuidade é que decantamos as camadas do tempo. É quando somos juízes como os juízes devem ser, imparciais. Por vezes, a lente embacia-se quando retalha os outroras que importam. Os julgamentos atraiçoam-se na sua parcialidade invisível. Os pessoais tribunais que afiançam sentenças sobre os outroras são lugares terríveis.
O mal está nas sucessivas camadas do tempo que escondem outras tantas fuligens que tudo embaciam. É como se houvesse uma cortina de sombras sobrepostas, as sombras de diferentes matizes em recíprocas interpenetrações até tudo se tornar um indistinto caos. Os espelhos fitam-se uns nos outros, projectando imagens distorcidas. Que, contudo, se insinuam aos olhos como imagens que, num certo instante, se oferecem em cristalina cintilação, como se o momento se emoldurasse na sua perenidade.
Eu digo que os dias que perfazem os outroras, os outroras que importam e os outros rendidos ao anonimato das memórias, se fazem baços no seu ocaso. Os elos do tempo, a joalharia que colhemos em cada dia que foi nosso, são a melodia que entoa a lição de que falas: “o presente foi o futuro no passado”. Mas seria preciso que os dias estivessem agrilhoados por anéis recíprocos, como se fosse possível ter três dedos presos no mesmo anel. Ora os dias decantam-se. As diferentes camadas do tempo são isso mesmo – camadas com diferentes espessuras. O passado, o presente e o futuro deslaçados entre si.
O presente nunca é o futuro no passado. É efémero. Se dizes que todos os dias já gastos se encavalitam uns nos outros em prenúncio do futuro que o presente não consegue adivinhar, digo-te que isso não passa de uma sucessão de acasos. Admito que as resoluções de hoje adulteram o porvir. Mas o que importa se elas não são uma intencionalidade futura, se não são coreografadas com o propósito de serem arquitectas dos dias vindouros? É quando a inutilidade do passado transpira entre os poros. Os dias de antanho, embaciados pelos olhos estremunhados, tudo o que conseguem é semear um sobressalto que enxuga a claridade dos dias presentes.
Teimo: as sucessivas camadas do tempo não são contíguas. Surgem-nos deslaçadas. Mas ainda admito que a ferocidade dos dias presentes, a vontade de os sorver um de cada vez como se não houvesse amanhã qualquer, possa dissolver a lucidez. Nessa altura, a intemporalidade das sucessivas camadas do tempo (que aqui reclamo) também é um embuste.
2 comentários:
Texto muito bom.
aBRAÇO.
A nossa essência é ,sem dúvida, o presente. O passado apenas nos serve, para nosso próprio proveito. Cada um revive o passado que quer.
Já tentei projectar muito no futuro e na hora virei para o rumo oposto. Os planos futuros de pouco valem. Talvez apenas os utilize para mostrar aos outros que não estou à deriva, quando na verdade é o que realmente acontece...
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