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Vieram ladrões de um lugar remoto. Odiavam o natal. Tinham inveja da felicidade que cobria o rosto das crianças, da bonomia a que eram forçadas sob a promessa de um pai natal generoso. Gatunos impiedosos que se deliciavam a imaginar um natal azedo, os confrades todos amesendados à volta de uma ceia de natal sem doçarias, todos tristonhos.
Não havia filhoses, bolo rei, rabanadas, aletria, sonhos, mexidos. Nada. Por carência de açúcar. Os meliantes organizados em brigadas, encapuçados e munidos de armamento respeitável, espalhados pelos quatro cantos do território, atiraram-se enfurecidamente aos carregamentos de cana de açúcar que as refinarias tratariam de transformar no necessário açúcar para as iguarias doces da época. Nos mercados, stocks em ruptura. Quem primeiro tomou conhecimento da ameaça de ruptura açambarcou avantajadas doses de açúcar.
Entre os especuladores estavam anónimos, mas não agora encapuçados, membros das brigadas de desmancha prazeres da quadra natalícia. Eles lá sabiam os próximos dias, os pacotes de açúcar a rarearem nas prateleiras dos supermercados. Pela calada da noite, em camiões indiferenciados, já montados nos seus capuzes tingidos a negrume, encaminhavam-se para praias desertas. Os camiões avançavam no areal até às proximidades do mar, para onde eram arrastados os carregamentos de açúcar. Mal tocavam a insalubre água do mar, destinados à contaminação.
Numa noite, um homem errante descobriu a marosca. Arregaçou as mangas com a coragem que só é dada aos heróis e entrou na água para salvar uns míseros pacotes de açúcar. No areal, os mercenários vestidos de negro nem reagiam. Apenas soltavam sonoras gargalhadas até que o presunçoso herói descesse à terra. Ao menor contacto com o insalubre mar e o açúcar era perda irremediável. O silêncio das gargalhadas determinou o retorno à lucidez do pobre homem que se encenara herói. Os mercenários avançaram em pose ameaçadora. Tinham que o prender, não fosse o plano segredado e o natal enfim resgatado à sua adocicada, falaz essência. Para aquele abortado herói nem haveria natal.
A tarefa era temporária. Os insólitos terroristas só queriam boicotar o lado doce do natal. Não destruíram as toneladas de cana de açúcar violentamente roubadas dos navios que aportaram em Leixões e em Setúbal (três vigilantes e um moço a bordo de um navio contavam-se entre as vítimas mortais). Foram armazenadas em segredo até que o degredo do natal tivesse suplantado a bitola do calendário. Num certo dia, as brigadas de desmancha prazeres natalícios informaram por comunicado às redacções: a 7 de Janeiro seria revelado o paradeiro das toneladas de cana de açúcar. As autoridades suspeitaram de gente que faz da saúde pública fundamentalista causa de vida. Cardiologistas, nutricionistas, endocrinologistas, gurus de uma vida anemicamente saudável, todos de braço dado com os rotineiros corruptores da habitualidade dos costumes, os sacerdotes da contínua denúncia das aleivosias do capitalismo e do esplendoroso, e contudo, fútil consumismo.
Com uma vigorosa palmada das mãos mesmo junto aos ouvidos, despertei das terras oníricas. O açúcar ia faltar de verdade, ó desdita, para desgosto dos muitos em quem a água já crescia na boca só de antecipar o fartote de aletria, rabanadas, sonhos regados com aquela deliciosa calda, mexidos e o mais que viesse à mesa. E não havia malfeitores incumbidos de boicotar o adocicado lado do natal. Era o mercado que tinha falhado. Só que desta vez, nem à força o presciente Estado conseguiu corrigir a falha do mercado.
Um natal doce, só para os prevenidos. Aos demais, adocicado natal adiado por um ano.
1 comentário:
Um belíssimo conto que tem aqui!
Constata-se aqui que não vive o Natal da cozinha, mas sim o da mesa (e muito bem, diga-se!).
O mel ou até mesmo outros açúcares, que não a sacarose, também são capazes de fazer boa figura. São mais caros, claro está, mas viáveis.
Assim sendo, os seus produtores poderiam associar-se à "brigada de desmancha prazeres da quadra natalícia"(BDPQN). Mas essa seria a parte inicial, pois que na meta apenas uma das facções poderia sobreviver. Suponho que a dos outros açúcares venceria, já que a BDPQN entretanto se preocupa em larapiar peças de presépio!
Mas o Natal é mesmo assim, de uma maneira ou de outra (parco ou exuberante; amargo e doce, como laranjas; pleno ou escamoteado), força-nos a celebrá-lo.
V
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