9.12.10

À estalada?


In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgAi-iMmbhZa44rqUDSqxqsMXQQIbXj3yCTosPP5BHKVbyvPCp0XNMzuxyWA8rNxon5jQp0Dll5PR0aR3Lj38U4nq4w_vrZho34UAvbZEnWOfk5cVzH7c5ra30hufDbX2biL5V8Aw/s400/Bofetada+sexy.jpg
Mote: “bofetadas não são violência doméstica” (sentença do Tribunal da Relação de Coimbra noticiada no Público)
Estou a ver o filme: os decanos juízes do tribunal, amofinados na vetusta toga de onde se desprendem os borbotos mentais; os sapientes magistrados, na sua mental, cavernosa tosse, incomodados por alguém lhes ter trazido um caso destes que nem merecia ser admitido a recurso; os pançudos juízes, um coçando grisalhos cabelos junto às orelhas, o outro tirando o cotão dos ouvidos, o terceiro escarrando o pigarro para um lenço amarfanhado e imundo, pensando com os seus botões: “se descobrem que dou uns ocasionais tabefes na consorte, ainda sento o rabo no banco dos réus”.
Até percebo, usando a lógica argumentativa, que os senhores magistrados não tenham condenado a boçal personagem que pespegou duas estaladas na que fora em tempos sua companheira. Vou lá atrás, à poeira do tempo, para resgatar a equívoca formação jurista. Só para tentar entender a lógica que contaminou os juízes coimbrões. Lógica jurídica, lógica da batata. Suas excelências usariam em primeiro lugar este argumento para rebater as razões de quem tinha feito o recurso: assim como assim, doméstica não é esta violência, pois o homem já não era casado com a mulher em cujo rosto deixou duas estaladas bem firmadas. Segundo argumento: para ser doméstica, a violência conjugal (o que já não era o caso, pela extinção do casal) tem que ser praticada no remanso do lar. Ora as estaladas foram aplicadas na rua. Se há violência, ela não é doméstica.
Se há coisa que me recordo dos lamentáveis anos em que andei a aprender direito, é que os juristas são prisioneiros dos formalismos e gente com propensão para a hipocrisia hermenêutica. Às vezes são lapidares nas conclusões que tiram, porque as leis são tão claras que não deixam lugar a dúvidas. Mas noutros casos, os famosos catedráticos interpretam hoje de uma maneira e amanhã, sobre a mesma lei, oferecem a interpretação que está nos antípodas da primeira – sem que alguém os possa acusar de incoerência, pois a ninguém é admitido o topete de contrariar suas sumidades. As leis são coisas muito voláteis. Ora esta volatilidade hermenêutica parece explicar a sagacidade dos juízes coimbrões. Lá está: se a vítima do estalo e o seu autor já não eram casados, como se pode considerar doméstica esta violência? E mesmo que se aceite a existência de violência, não diz a “sabedoria popular” que “entre marido e mulher não se mete a colher”?
Continuo a divagar por dentro das brilhantes mentes daqueles juízes. O cheiro a mofo que se liberta das togas respectivas à passagem dos venerandos magistrados explica o perdão do agressor. Como insinuei lá atrás, vai-se a ver e os ilustres julgadores têm o costume de terminar um pleito doméstico usando a força bruta de um par de estalos que silencia a consorte. Remando contra os modismos dos vanguardistas que adulteram o sentido das leis, os magistrados discordam que a violência doméstica contrarie o adágio popular e agora todos possam meter a sua colherada entre marido e mulher. E se tudo isto não chegar para validar a argumentação, os senhores juízes deixariam para o fim o trunfo maior: e desde quando uma inocente estalada por ser considerada violência?
Não resvalasse para a linguagem radical, e o que apetecia dizer é que suas excelências, os digníssimos magistrados daquele importante tribunal, mereciam ser corridos à estalada.

2 comentários:

Vanessa, a Mãe Possessa disse...

Que falta de dignidade!
Contudo, não consigo resistir a depositar a graçola óbvia: há consortes sem sorte!
Por outro lado, já por vezes a sabedoria popular vê numa estalada uma carícia em alta velocidade!

PVM disse...

Uma bofetada como "carícia em alta velocidade" é um belo eufemismo...