6.12.10

Diário de um narcisista incorrigível (III, epílogo)


In https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjMKjc3fOqDAApqhCrRzrD0MrU5HwDzLeVfRV-83-D00HISf_y-lKlUOkx1ccN1X29p2ymR2G2MyiHxc49SBIVI2wzOtnPP4ciFTiKCVSufx1mDrahCbawIC-Figdy2NYmTQ1866Q/s1600/rosa+negra.jpg
(Na primeira pessoa. Sem ser autobiográfico, para esclarecer algumas dúvidas)
Tratei dos detalhes. Já estava habituado. Estes engates de circunstância eram rotineiros. Um imperativo para continuar a dar corda ao profundo narcísico que habitava em mim. Encomendei o jantar na empresa de catering do costume. Desta vez não precisava de requintes – a rapariguinha, excitada como estava só por saber que ia jantar comigo, nem sequer se recordaria do manjar no dia seguinte. Telefonei ao porteiro, como também é habitual: “faça-me o favor, senhor Vieira: diga à sua mulher para ir a minha casa e que ponha a mesa. Não se esqueça de acender umas velas. E deixe a sala à meia luz.
Fui buscar a rapariguinha (e não é por acaso que ainda nem sequer sabia o nome dela). Aos subúrbios, a um bairro degradado, as paredes dos prédios abundantemente pintadas com grafitos e palavras de ordem de rappers. Enquanto aguardava, uns rapazes negros aproximaram-se. Sem pose agressiva. Mantive a calma. Talvez não estivessem habituados a ver por aquelas paragens um pintas tão engravatado num automóvel de gama alta. Não houve tempo para socialização forçada. A rapariguinha desceu. Tinha tanto de humilde como de voluptuosa. Trazia um vestido horrível que, contudo, realçava os seios roliços e abundantes e as coxas carnais que se insinuavam através das provocantes rachas do vestido.
Não conversámos até a casa. Ela estava nervosa: batia constantemente o pé, roeu duas unhas, tossia com agitação, de vez em quando mordia o lábio. Quando subíamos no elevador, fitei-a nos olhos, profundamente. Acariciei o rosto. Estremeceu, do mesmo passo que entregava o rosto à curvatura da minha mão já quente. Sempre em silêncio. Trocámos as primeiras palavras à mesa. Depois de ela ter andado pela sala em débito da sua curiosidade, encantada pelo luxo da casa, detendo os olhos em livros, nos CD, em alguns objectos decorativos. Sempre naquela pose insinuante que me perturbava, aquela pose que escondia um vulcão.
Ao jantar, entregámo-nos ao jogo da sedução. A conversa foi banal. Notei a boçalidade nos modos à mesa. Para o caso, isso não interessava. Antes pelo contrário: todos os sinais deixavam antever uma noite tórrida, sem peias. Falámos dela. E nunca de mim, que gosto de preservar uma grande parte de mim para a coutada intransponível a olhos alheios. Esse lado misterioso faz parte do encantamento que trago comigo. Falámos dela. Da sua condição humilde, que todavia não a envergonhava.
À medida que conversávamos, a menina de modesta condição social, tímida e acanhada na aparência, soltou-se numa mulher senhora de si. Sentados no sofá, fiz a primeira investida. Algo correra mal: ela recusou o gesto, desviou a cara ao primeiro ensaio de um beijo. Algum tempo depois, insisti. Outra vez sem correspondência. À terceira, perguntei-lhe o que lhe ia na cabeça.
- Humilhar-te, retorquiu com aspereza.
- O quê? Estás louca? Tu sabes quem sou?
- Sei bem. Um convencido. Já notara como passas...
- Ah, agora já me tratas por tu...
- ... como passas com essa altivez, como olhas sempre com sedução quando vês um rabo de saia apetitoso. Como essa tua altivez subjuga as mulheres. Homens como tu metem-me nojo.
Fiquei lívido. Nunca tal tinha me acontecido. Eu, um autêntico D. Juan, rejeitado e logo por uma quase ainda imberbe rapariguinha de subúrbios. Que, afinal, contrariando a primeira impressão, não devia nada à inteligência. Ela pegou no telefone e pediu um táxi. Antes de sair, em jeito de despedida, atirou-me estas palavras:
- Só para tua informação, sou lésbica. E orgulhosamente feminista.
Saiu batendo a porta com estrondo e fúria. Destroçado, com o amor próprio reduzido a cinzas, não consegui dormir. E fiquei sem saber o nome da rapariguinha. Na manhã seguinte, passeei as olheiras no café onde ela trabalhava. Não estava lá. Perguntei ao dono do café por ela. Demitira-se na véspera, ao fim da tarde.

2 comentários:

Vanessa, a Mãe Possessa disse...

E ontem a fazer-me crer que se ficava pelo segundo acto...!

PVM disse...

Mas hoje foi mesmo o epílogo!