29.12.10

Sopas de cavalo cansado


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Quando eras pequeno metiam-te pela boca abaixo, em doses diárias, sopas de cavalo cansado. Era coisa cheia de nutrientes – diziam, com alguma boçalidade tartamudeada, os teus progenitores. Não eras o único. Na escola havia uns quantos que também deixavam um rasto de álcool à sua passagem. Os professores, quase todos, eram de idêntica igualha. O director da escola sentenciava, ao ser importunado por um punhado de colegas que se indignavam com tão extemporâneo sacerdócio de álcool: “já dizia Salazar que o vinho dá de comer a um milhão de portugueses”.
Os teus progenitores não o faziam por mal. Eles também foram “educados” (por assim dizer) nesse hábito desde tenra idade. À falta de visão das coisas e de instrução escolar, copiaram os padrões “educativos” que tinham sido os dos seus pais. E se havia um desmancha-prazeres que advertia para os males da habituação ao vinho por gente tão nova, os teus progenitores deixavam a enxada no campo e, em barda com o resto dos camponeses, insultavam o inteligente que tudo o que queira era semear a confusão.
Não admira que não tenhas ido longe nos estudos. Os progenitores também deixaram cedo os bancos da escola, que a força dos braços tinha serventia no campo e ao que se aprendia na escola não se via tamanha utilidade. O remédio para repor as forças exangues numa longa passada jornada nos campos era acordar com umas sopas de cavalo cansado e com outras recolher à cama. Pois se as bestas que ajudavam a lavrar os campos eram nutridas com essas sopas, elas teriam o mesmo efeito nas gentes. A começar pela gente ainda de bueiros.
E não admira que não tenhas ido longe na escola: o vinho emudecia as capacidades de estudo. Há por aí uns cientistas malucos que juram a pés juntos que álcool a rodos contamina os neurónios, ou lá o que isso é. Parece que as gentes que enfrascam carradas de matéria etílica perdem capacidades de intelecto. Não é só o fígado que se ressente quando se entrega nos braços de cirroses crónicas. E se é verdade que os amantes do vinho e de outros álcoois se estupidificam por assassínio de neurónios, está encontrada a explicação para o teu precoce abandono escolar. Não se terá perdido grande espingarda, a crer nas dificuldades por que passaste na aprendizagem.
Hoje, mal sabes ler e escrever. Arrastas a tua proficiência pelas tascas da aldeia, na baderna, em zaragatas com os costumeiros parceiros com quem desatas à estalada quando os vapores etílicos tomam conta da lucidez. Quando chegas a casa já a noite é tardia, implicas com a consorte e com a numerosa prole que já dormia o sono dos justos. A tua fúria endemoninhada, alimentada pelos numerosos copos de três do tinto carrascão, descarrega-se nos entes queridos (como se por acaso tivesses entes que te são queridos), tal como antes fora descarregada nos parceiros da baderna que contigo militam na desordem.
Dizem que foi por causa das sopas de cavalo cansado que embuchaste desde novo. Dizem que a têmpera de uma pessoa fica alterada, o vinho a fermentar a boçalidade completa que há-de vir à superfície mal a idade adulta espreita à esquina da adolescência. O que nunca alguém te explicou é como dão sopas de cavalo cansado a crianças ainda de bueiros. Pode lá um infante em tenra idade andar cansado como um cavalo. E o doping dos desportistas medalhados é de outras andanças, não de sopas de cavalo cansado.

1 comentário:

Anónimo disse...

Tens razão na maioria da prosa todavia, não generalizes. São dessa época (e outras mais recuadas) alguns, poucos crâneos, que o país pariu