12.11.13

Afilhado da memória com perna curta

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Não gostava que lhe chamassem cacique. Ele só praticava generosidade. Espalhando sinecuras pelos afilhados, ou movendo influências para que outras prebendas estacionassem nas “pessoas certas”. Admitia que tinha tecido uma teia de influências. Admitia que os favores de hoje tinham paga futura. Não via nisso mal nenhum. Se assim era em todos os lugares, por aqui e no estrangeiro, por que haveria de ser ele diferente? Pragmático como sempre soubera ser, não se emocionava com enlevos líricos. Os poetas eram os outros. Ele escolheu a causa pública (e, pelo caminho, os negócios), onde não entram estas sensibilidades.
Um dia, por interposta pessoa, chegou pedido para outro apadrinhamento. Quis saber a linhagem do proposto. Estudou o dossier pessoal do candidato, que nos últimos tempos tinha subido a exigência mercê de um punhado de deceções orquestradas por gente que nunca devia ter sido apadrinhada. O proposto parecia insuspeito de credenciais. Agora que os saberes universitários estavam democratizados, era impensável alguém entrar na roda das sinecuras sem o lastro das habilitações mínimas. Chamou o proposto para um almoço. Ficou impressionado. O rapaz nidificava em experiência, ele que acabava de despir os cueiros da universidade. Era bem falante, assertivo, com ideias arrumadas, tinha uma aura encantatória. Eis porque foi logo com recomendação para cargo importante: estava diante do padrinho e nem um laivo de nervosismo transpirava.
O rapaz entrou na roda viva dos cargos. Foi subindo, uma meteórica ascensão. Dos afilhados todos, nos que o cacique mantinha rédea, este era o mais promissor. Depressa entrou no altar das certezas. Quando começou a ser demandado para apadrinhar outras promessas que ambicionavam amesendar com os poderosos, percebeu que essa era a sua emancipação. Como o poder detido em suas mãos era uma fatia grossa, com atuação que não dependia de mais ninguém, começou a ter os tiques dos pequenos sobas. E começou a mover-se nos corredores do poder, disputando o jogo do poder com os peões que lançava a jogo.
Um dia, dois afilhados reclamavam sua uma prebenda qualquer. Um deles vinha com selo do patriarca. O outro apresentava-se com caução do arrivista. O patriarca telefonou para o arrivista. Em tom paternal, aconselhou o arrivista a prescindir do seu afilhado para aquele cargo. O arrivista não se demoveu. Desafiou o velho patriarca a ser ele a desistir da contenda. Este, já com voz iracunda, tentou desfeitear o outrora afilhado (já percebera, pelo tom desafiante, que os laços se tinham adelgaçado). Ainda invocou o dever de lealdade. Ainda foi ao trânsito da memória, reavivando a do arrivista: “se não fosse por mim, tu não tinhas sido ninguém.” Este, fleumático e triunfal, acabou a conversa: “não me trate por tu. Respeite-me pelo que sou agora. Se sou o que sou, foi pelo caminho que fiz. O senhor só me abriu uma porta, uma pequena porta. O resto, fiz eu. Mereço respeito pelas proezas minhas.

No entardecer do dia seguinte, o arrivista entrava, pesaroso e muito comovido, no velório do (outrora seu) padrinho.

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