27.11.13

Desmundo

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Os corpos contorciam-se. Arqueados, capitulavam perante a dor terrível que os consumia. Ninguém percebia por que assim se debatiam. Os olhos nublados não distinguiam as cores que vinham do horizonte. Os vultos em redor, deformados nas suas silhuetas, também pareciam arrebatados pela consumição da dor. As árvores viraram as raízes do avesso. As ondas do mar desembrulhavam-se de fora para dentro. Os ponteiros dos relógios começaram a andar trás. Os pássaros, à mão de semear pois não conseguiam assisado voo. Os ladrões arrastavam-se pelo chão em demanda da claridade, julgando que a apoplexia se devia à escuridão do esconderijo.
Os verbetes, escrevinhados em letra trémula, pontuavam a perplexidade. Seria um ataque químico, os músculos quase paralisados depois de breve dor lancinante? Num ápice fez-se noite – e a hora arrastada para trás pelos ponteiros rebeldes dos relógios não quadrava com a deposição da claridade diurna. Tão depressa a noite tomou conta do céu como depressa o deixou imerso em sua luminosidade. Só se ouvia o miar esganiçado dos gatos e o uivar demencial dos cães. A terra tremeu sob os corpos dobrados sobre si mesmos, todos deitados no chão. Nos carros, havia quem conseguisse ligar o rádio para saber que emergência era aquela. Mas os rádios só debitavam um irritante ruído de fundo, não havia humanas vozes, nem música sequer, tomando conta das frequências.
Não se sabe ao certo quanto tempo depois, os corpos saíram da sua contrariada rigidez. Depois da hibernação, não sabiam do lugar em que estavam. Menos ainda era a noção do tempo que era (a memória fresca ainda evocava os ponteiros dos relógios na sua marcha às arrecuas). As pessoas começaram a falar umas com as outras, pareciam conhecer-se de longa data mesmo as que eram desconhecidas. As estações de rádio e televisão continuavam emudecidas. Os líderes, também recuperados do torpor involuntário, procuravam fazer o ponto da situação. Não havia respostas às muitas perguntas. Nem as câmaras de vigilância, as tantas câmaras de vigilância que sinalizavam o Estado policial que medrara, ajudaram: também estiveram mergulhadas no nada. Ainda imersas no pânico da desorientação, as pessoas só conseguiam notar que aquele tempo em forçada hibernação talvez tivesse selado um temporário desmundo.
Algumas, resgatada a lucidez antes das demais, perceberam que houvera uma rutura. O desmundo fora dantes. A impassibilidade de tudo deixava à mostra a diferença. Não era o desmundo que viera depois da hibernação contrariada. O desmundo fora o dantes.

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