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Os corpos contorciam-se. Arqueados,
capitulavam perante a dor terrível que os consumia. Ninguém percebia por que
assim se debatiam. Os olhos nublados não distinguiam as cores que vinham do
horizonte. Os vultos em redor, deformados nas suas silhuetas, também pareciam
arrebatados pela consumição da dor. As árvores viraram as raízes do avesso. As
ondas do mar desembrulhavam-se de fora para dentro. Os ponteiros dos relógios
começaram a andar trás. Os pássaros, à mão de semear pois não conseguiam assisado
voo. Os ladrões arrastavam-se pelo chão em demanda da claridade, julgando que a
apoplexia se devia à escuridão do esconderijo.
Os verbetes, escrevinhados em letra
trémula, pontuavam a perplexidade. Seria um ataque químico, os músculos quase
paralisados depois de breve dor lancinante? Num ápice fez-se noite – e a hora
arrastada para trás pelos ponteiros rebeldes dos relógios não quadrava com a
deposição da claridade diurna. Tão depressa a noite tomou conta do céu como
depressa o deixou imerso em sua luminosidade. Só se ouvia o miar esganiçado dos
gatos e o uivar demencial dos cães. A terra tremeu sob os corpos dobrados sobre
si mesmos, todos deitados no chão. Nos carros, havia quem conseguisse ligar o
rádio para saber que emergência era aquela. Mas os rádios só debitavam um
irritante ruído de fundo, não havia humanas vozes, nem música sequer, tomando conta
das frequências.
Não se sabe ao certo quanto tempo
depois, os corpos saíram da sua contrariada rigidez. Depois da hibernação, não
sabiam do lugar em que estavam. Menos ainda era a noção do tempo que era (a
memória fresca ainda evocava os ponteiros dos relógios na sua marcha às
arrecuas). As pessoas começaram a falar umas com as outras, pareciam
conhecer-se de longa data mesmo as que eram desconhecidas. As estações de rádio
e televisão continuavam emudecidas. Os líderes, também recuperados do torpor
involuntário, procuravam fazer o ponto da situação. Não havia respostas às
muitas perguntas. Nem as câmaras de vigilância, as tantas câmaras de vigilância
que sinalizavam o Estado policial que medrara, ajudaram: também estiveram
mergulhadas no nada. Ainda imersas no pânico da desorientação, as pessoas só
conseguiam notar que aquele tempo em forçada hibernação talvez tivesse selado
um temporário desmundo.
Algumas, resgatada a lucidez antes das
demais, perceberam que houvera uma rutura. O desmundo fora dantes. A
impassibilidade de tudo deixava à mostra a diferença. Não era o desmundo que
viera depois da hibernação contrariada. O desmundo fora o dantes.
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