29.8.14

O desamor parideiro


Anna Calvi & David Byrne, "Strange Weather", in http://www.youtube.com/watch?v=ylBZmqY0Oag
Ele olhava por cima do pôr-do-sol. Podia ser que uma centelha inesperada fugisse ao ocaso e se mantivesse acesa, a iluminar a noite. Porque tinha medo da noite. Temia que a noite viesse fértil em fantasmas. E que os fantasmas recordassem os sobressaltos havidos e pusessem à superfície as obscuridades que tinham deixado de importar. Para a noite não ser importunação, punha-se de atalaia. Era como se tivesse a noite pela trela, para ela não embotar um módico de alívio que ganhara com tanto custo. A noite não ia pela noite fora sem freio. Quando a alvorada sondava alguma claridade no céu, os olhos capitulavam e decaiam no sono. Vestido e tudo, onde calhasse. Durante esse sono, sonhava que o desamor teimoso era um destempero do acaso. Olhava para os pares de namorados por onde andassem embrenhados em romance. Não conseguia reprimir a cobiça. Porque, para além da noite, a solidão também o atemorizava. Julgava que era um acosso de generosidade (julgava-se prolixo em generosidade, e nunca achou que o mal fosse do juízo que fazia de si próprio). O pressentimento da solidão não era porque a solidão fosse a patologia, com relâmpagos letais a adejar sobre a sua cabeça. Como tinha uma elevada consideração de si, julgava que a sua companhia era um bálsamo para quem dela fosse colher as flores orvalhadas no regaço. Para mal de todos os pecados, à elevada consideração de si contrapunha-se a autoestima sem lugar. Navegava em equívocos. Fruía as esperanças de que o tempo vindouro fosse propício. Não se incomodava com o desamor parideiro. As coisas haveriam de mudar. Era o ocaso que o dizia, nas entrelinhas, enquanto o sol se esvaía por um buraco da agulha algures na geografia do firmamento. As vozes que sussurravam entre as esquinas das ruas estreitas confirmavam-no. A fertilidade parideira do desamor tivera já o seu epílogo. Oxalá a infertilidade medrasse o seu contrário. Com a largueza do tempo por diante.

28.8.14

Maré alta


Sétima Legião, "Sete mares", in https://www.youtube.com/watch?v=NmlDjghuTsw
Não, o mar não é timorato. Nem nós. À nossa beira, os marinheiros intrépidos, de quando ir ao mar era uma demência, são meninos do coro. Tomemos o mar em nossas mãos. Sejamos os feitores das marés. Sulcamos as ondas, que se atemorizam diante de nós, para as afeiçoarmos com as mãos aveludadas. Cinzelamos as correntes que moldam as profundezas do mar. Somos intermediários do clima que faz em terras tão distantes umas das outras. Quando é preciso, vertemos a fúria nas tempestades que agigantam o mar. E deixamos a nossa magia na beleza que entroniza o mar, seja na alvorada quando o mar se amacia na ausência de vento, seja quando os ventos moderados desarranjam as águas que se amotinam na ondulação agreste, seja ao anoitecer quando o vento amaina, talvez cansado de tanta correria, e o mar lhe serve de leito. Não falemos de mares, porque as convenções dos oceanos diferentes são um ardil da geografia. Há um só mar, os oceanos todos ligados entre si. Um só mar. De que somos timoneiros. Guardamos todos os faróis, todos os cais onde vêm repousar os navios que militam no mar, os fiordes noruegueses, as ilhas exóticas, os mares gelados ou os de águas tépidas. Mandamos o mar ser o arquiteto da paisagem. Chamamos as marés a nós, somos o relógio que as comanda. Mandamos recuar o mar para deixar à mostra os segredos que tem nas rochas que beijam as areias quando as águas desertas as deixam nuas. E mandamo-lo regressar, em forma de maré cheia, quando queremos que as altas ameias fiquem escondidas pelo espelho de água – tal como os segredos que resguardamos no nosso covil. Pela grandeza do mar oxigenamos a alma. Devolvemos gotas da nossa grandeza que tornam o mar ainda maior. Sobre ele repousa o sortilégio das palavras que ousamos dizer, com a força dos pulmões cheios ou num sussurro escondido do luar que reluz no céu escuro. E fazemos tudo desde a janela que é nossa escotilha sob o mar.

27.8.14

Mais valia acertar na lotaria


In http://sometimeshere.blogs.sapo.pt/arquivo/Lotaria%20Nacional.jpg
O Malheiros escreve às terças-feiras no Público. É o (em rigor: um dos) César das Neves da extrema-esquerda que chega às páginas dos jornais. É faccioso. E moralista – como adora escorrer lições de moral aos outros que vão por ideias diferentes das dele, a quem são imputados, por adivinhação mestra, comportamentos malévolos. Talvez o Malheiros fique sossegado, no seu cantinho, a imaginar que os que são diferentes dele, por quem destila um ódio patológico, têm comportamentos que incensam a censura da sua altiva moralidade. Ontem o Malheiros sacou do coldre mais uns bitataites argumentativos. A propósito do – diz ele – ódio da “extrema-direita económica que governa o mundo ocidental” à igualdade. Para o Malheiros, a dita extrema-direita é sinónimo do neoliberalismo. É uma redução simplista que deve convir à pequena cosmovisão que navega na sua cabeça, como se confundir a árvore com a floresta fosse método aceitável para quem tantas lições de como fazer jornalismo decente prega aos novos encartados. No resto da prédica, o Malheiros dispara vários tiros sobre os “neoliberais”. Acertam todos fora do alvo. Porque o Malheiros está convencido que os “neoliberais” estão a soldo dos grandes interesses do capital. Está convencido que os grandes capitalistas são gente malvada que se compraz com a pobreza dos outros. Está convencido que os capitalistas conspiram contra os trabalhadores, que os querem submeter a uma indigência atávica. Está convencido que os horrendos capitalistas leram os clássicos do liberalismo (mas ele continua a chamar-lhes “neoliberais”), onde recolheram o catecismo que professa a desigualdade. Está, ele próprio, convencido que leu esses clássicos. Se muito, tê-los-á treslido. Pois o Malheiros não acerta uma. Dando o benefício da dúvida de que apedeuta não seja seu predicado, sobra a hipótese de o Malheiros estar a falar do que não sabe. Puxa galões à fértil imaginação (que podia fazer furor, talvez, no ramo da literatura de ficção) e esgadanha uma série de frases sobre o que ele acha que são e pensam os que ele detesta. Antes lesse, para não fazer fraca figura. Antes o Malheiros adivinhasse a lotaria, ou o euromilhões. Para depois vermos a sua pródiga generosidade em ação.

26.8.14

A marcha do orgulho


In http://www.jcnet.com.br/banco_imagem/images/prisioneiros%20Ucrania%20-%20reuters.jpg
A indignidade das guerras, ou de todas as vezes em há homens em discordância que decidem humilhar os que se lhes opõem. Não é laudatório da história da espécie. Nuvens mais sombrias podem acastelar-se, um dia, e a sequaz intolerância genética será o punhal que sela a extinção da espécie. Às vezes, parece que a humanidade está sitiada numa autofagia demencial. Aproveita-se o tempo para ultrajar o adversário (que, nestas alturas, arrosta com um infausto substantivo: inimigo). Vi rebeldes pró-russos a obrigarem prisioneiros de guerra a marchar nas ruas, para gáudio dos organizadores da marcha e do seu séquito, agrilhoados uns aos outros, num ato de humilhação pública. Dizem as notícias que terminada a marcha dos tristes humilhados, vieram camiões lavar as ruas por onde tinham marchado, contrariados, os prisioneiros de guerra. A humilhação quebra os adversários. Torna-os moles, mas avilta a vitória de quem assim consegue triunfar. A humilhação não é o lacrau dos vencidos, é a exibição de fragilidade dos que forçam os outros à marcha da humilhação. Um oxalá: sempre que houvesse marchas de humilhação, os submetidos à covardia (dos que no momento estão entronizados no poder) pudessem ter força anímica para responder com um comportamento insólito. Os prisioneiros de qualquer guerra não deviam desfilar de rosto fechado, olhos semicerrados apontados ao chão, consumidos em sua vergonha, humilhados nos andrajos que trazem em cima do corpo, ultrajados pelos insultos da horda que triunfalmente os apouca. Deviam ostentar um sorriso lhano, um brilho nos olhos, a cabeça emproada, o queixo acenando em tom de agradecimento a cada insulto proferido pelos transeuntes em exultação. Não deviam dar o braço a torcer aos torcionários que os empurrassem para a marcha da vergonha. Nem que desconfiassem que, feita a desfeita aos algozes, depois pudessem sofrer sevícias como paga pelo contratempo. Mas saberiam, nem que tal fosse fraca recompensa, que no final das contas a marcha da humilhação tê-lo-ia sido para os funestos carrascos.

22.8.14

O Rodolfo


Dexys Midnight Runners, "Geno", in https://www.youtube.com/watch?v=FJc_q8eH2ng
O Rodolfo era mitómano de si mesmo. Vivia aprisionado num mundo que só existia dentro da sua cabeça. Para o Rodolfo, cada pessoa que conhecesse era um amigo. Não era por idealismo; era por ingenuidade. Porque o Rodolfo treslia a realidade. E não aprendia com as inquietações de outrora, que haviam, nesse tempo, desarranjado o sossego. Voltava sempre à casa da partida. À mesma casa da partida. E depois, os passos eram repetições de processos antigos. Como o mundo fora da cabeça do Rodolfo muda pouco – que as mudanças, as estruturais, exigem um tempo maduro – acabava submerso numa ladainha. Era quando o Rodolfo se comiserava do mundo exterior a ele, de como o mundo, e as pessoas que o habitavam, era ingrato. Mas o Rodolfo nem era reconhecido por esse mundo. Era um anónimo como tantos. Só que o Rodolfo, sedento de visibilidade, ansioso pelo reconhecimento dos outros, era pródigo em esforços de socialização. À falta de amigos que pudessem ser reconhecidos dessa gesta, ia ao encontro de grupos. Precisava de gurus. E gurus achava-os, com um estalar dos dedos, em grupos. Quando aterrava nas imediações de um grupo, ia em pezinhos de lã metendo pé ante pé até se achar embebido no grupo. Os outros não davam conta de que Rodolfo existia. Nem ele fazia por se fazer notado: a timidez consumia-lhe as veias, não falava com os mesmos estranhos que cedo tinha como amigos. À noite, deitava-se convencido de proezas imaginárias. O travesseiro era testemunha das efabulações de Rodolfo. Ele revia-se no guru grupal e reproduzia os discursos e chamamentos como se tivessem sido sua autoria, com a mesma voz gutural do guru do momento. O sonho depressa se impregnava nos sonhos que viessem. Mas passavam-se dias e dias e Rodolfo não dizia, em voz sonora que fosse, uma só palavra. Um dia, sem aviso, emalou os pertences e emigrou. Para longe, sem planos. Admitiu que era um fracassado. Corroído pela fraqueza que por fim reconhecera, abalou animado com esta ideia: lá fora, onde tudo era novo e ninguém o conhecia, as coisas só podiam ser abraçadas pela ventura. Como dantes, Rodolfo voltou à casa da partida e mexeu as mesmas peças do xadrez. Não se lhe pressagiava radioso fado.