20.8.14

Contratempo


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O sono demorou-se. A preguiça matinal forçou o atraso. Por mais que se apressasse, mais ficava em atraso para a rotina diária. Não podia chegar fora de tempo ao trabalho, outra vez. Já sabia que o chefe o tinha sob vigilância. Bem lhe diziam, lá em casa, que estes não são tempos para facilidades. Meteu os pés ao caminho, ainda com o alto copo de plástico com o café quente pela metade. Mas não ia haver comboio. “A circulação está suspensa”, lia-se no placard dos anúncios. Ouviu alguém ao lado, em surdina, a lamentar-se da pessoa que escolheu aquela manhã para se atirar para debaixo de um comboio. Ele tinha de avisar que ia chegar atrasado por motivos que não pertenciam à sua vontade. Mas na pressa de sair de casa, deixou o telemóvel entre a confusão da roupa espalhada entre o chão e os cobertores desarrumados. Não foi pelo pânico fácil: há cabines telefónicas e uns trocos chegam para telefonar para o serviço avisando que não havia comboios e que não ia chegar a tempo. Todavia, em manhã de contratempos, não contou com outro em lista de espera: a tirania dos telemóveis subtrai da memória (encefálica) os números de telefone que são importantes. Ele não sabia o número do serviço. Estava incontactável. Ainda procurou saber se havia na estação um exemplar das páginas amarelas, ou um computador que pudesse usar para chegar aos contactos do serviço. Nem uma coisa, nem a outra. Resignado, saiu e sentou-se num banco do jardim mesmo à frente da estação. O dia estava radioso – eram os primeiros dias de sol depois da chuva que parecia interminável, um primeiro esboço da primavera que não tardava no calendário. O sol sobre o rosto compensou a sucessão de contratempos. Tempos depois, começou a ouvir as carruagens no retalhar estridente ao passarem pelas agulhas que as encaminham para o lugar certo. Voltara a haver comboios. Chegou ao serviço já era hora para retomar depois do almoço. Estava um ar pesaroso a adejar sobre os ombros de toda a gente. Enquanto não continha a angústia da reprimenda certa do chefe, perguntou a uma colega, em jeito jocoso, se alguém tinha morrido. No meio de duas lágrimas que desciam pelo seu rosto empalidecido, respondeu-lhe com uma interrogação: “ainda não sabes o que se passou? O chefe atirou-se para debaixo de um comboio”. Lívido, sentou-se na cadeira que estava à mão. Há contratempos que são a servidão de destinos entrelaçados.

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