31.10.14

Roer a corda

Tricky, "Parenthesis", in https://www.youtube.com/watch?v=1ZsPPljyFTo
Naquele dia, queria romper com o combinado. Com os contratos todos. Sabia que os tribunais, mais tarde ou mais cedo, estariam a morder a perna. Não queria saber. Ele havia tantas histórias de gente bem sucedida que perdera a vergonha na cara e fora por diante com os planos (insidiosos, para a gente temente das regras) que cuidavam de esquecer os deveres assinados. Era como se a assinatura deixasse de ter valor. Mas a perda de valor (da assinatura) não se contaminava aos titulares, a crer na altivez que os acompanhava, nos sinais exteriores de abastança que não quadravam com o resto.
Era por isso que às vezes perguntava se compensava ser cumpridor. Se os contratos eram mesmo para respeitar, se tantos não o faziam e a justiça não conseguia deitar-lhes a mão. Compensava o risco? Compensava o temor diário de acordar sem saber se a alvorada seguinte seria numa prisão qualquer? Era quando se lembrava de uma leituras sobre teoria dos jogos e gestão dos riscos. Uma alquimia de cálculos que exigia o domínio de todas as variáveis, as certas e mesmo as incertas, que podiam bulir com uma equação. E se na equação estavam valores tão importantes, as variáveis deviam ser pesadas com ponderação, sem sobrestimar umas e subestimar outras, não fosse o resultado da equação ser de tal ordem que a decisão final podia ser atraiçoada nos seus efeitos por erro de cálculo.
Chegou a trocar impressões com um aldrabão profissional. Soube alguns segredos (imaginou que o aldrabarão não contaria tudo o que sabe da poda) sobre a sorte de ser aldrabão até à justiça. Era preciso destreza, sangue frio, sentido de oportunidade, falta de remorsos – ou um cínico olhar de desconfiança sobre o mundo em redor, pois o aldrabão confessou que lhe fazia espécie ficar para trás dos espertos que singraram às custas dos líricos que seguem todas as regras de acordo com os bons mandamentos.
Andou dividido pelas hesitações semanas a fio. Uma noite, tomou a resolução final. As regras tinham sido feitas com dois propósitos: para serem cumpridas ou para serem evitadas, com a sapiência de quem as evita sem deixar rasto. Escolheu o sentido do risco perpétuo. E apostou, consigo mesmo, que as malhas da justiça não haveriam de conhecer o seu nome.

30.10.14

Pois se até os homens choram


Samuel Uria e Manuel Cruz, "Lenço Enxuto", in https://www.youtube.com/watch?v=GYBSMMURsVE
Desenganem-se os vetustos marialvas: os homens também sabem adestrar as lágrimas. Não são menos homens porque vertem lágrimas quando lhes é dado ficarem em frangalhos. Ou quando a emoção sobe aos olhos marejados. Choram, os homens. Como choram as mulheres. O que não conta, em desabono dos valentes marialvas, é aquartelar as pessoas entre os que choramingam e os que se mantêm firmes no seu posto, imunes às lágrimas salgadas, e que os primeiros são frágeis criaturas consumidas num mar de lágrimas e os segundos são heróis que servem de abrigo aos miseráveis.
Choram os homens. Sensíveis ou não. Uns podem mentir, em achando que as lágrimas são fermento da vergonha. Choram em privado. Escondem as lágrimas do conhecimento. Não querem que venham juízos perfecionistas sobre a frouxa têmpera dos que, mandam dizer os marialvas, se entregam à fragilidade das lágrimas. Mas é tudo o seu contrário. Se interesse houvesse em recrutar os fortes de têmpera (que não vem ao caso inventariar), esses eram os que mostram as lágrimas quando elas são vertidas com sentido.
Os que as escondem, cavalgando uma bravura espartana que é um sortido datado, são hipócritas dos sentidos. Pois eles também choram. Não têm o lenço enxuto. Também lhes é devido respeitoso elogio: eles, humanos como os demais, têm canais lacrimais que não foram acometidos por uma aridez sahariana. Choram, como os outros de que eles desdenham por dizerem, em jeito de defeito de personalidade, que choram. E se decidem resguardar as lágrimas para o pudor da intimidade, é direito que não lhes pode ser retirado. Mas não venham dizer que os que têm a coragem de mostrar lágrimas são gente encolhida pela fruste macieza das emoções. Elas existem, pois somos todos gente que voga num extenso mar de emoções. Algumas rimam com as lágrimas que são vertidas na levitação do sal que vem da ebulição dos motins interiores.
Choramos – e depois? Arranjamos coragem para limpar as lágrimas. Sem as recusar.

29.10.14

Os piratas dos sonhos

Scout Niblett, "Kiss", in https://www.youtube.com/watch?v=0uDlvl7jNn8
Há gente criminosa que tem por passatempo insinuar-se nos sonhos dos outros. Gente sem escrúpulos, tomando conta daqueles sonhos, neles semeando personagens improváveis, ou personagens indesejáveis, ou personagens que parecem saídas de uma tela surrealista.
Como nos computadores: gente que entra onde não é chamada. Intrusos sem remissão. Gente que se apodera da vontade dos outros, que os outros, por anestesia dos sentidos, não podem medir meças. Cozinham os sonhos pelos meandros que são a imagem da vontade dos intrusos que se apoderam dos sonhos que não são deles. Têm um prazer mórbido: acham-se superiores por serem domadores dos sonhos que povoam sonos alheios. Acham que lhes é dado desprender dos trajes que são seus para se meterem por dentro das existências que lhes são exteriores. São mesquinhos domadores de ventos oníricos que não vão e vêm ao acaso. O acaso seria se não houvesse vontades outras a embaciar sonhos que seus não são. Esses seriam sonhos legítimos, sonhos embebidos na espontaneidade acasalada com as asas do sono.
Os criminosos que querem ser quem não são, ou fermentar o desassossego no sono de quem o queria aplacado de importunações, são bestas negras que não sabem viver dentro das baias que são a sua própria existência. Só existem se extravasarem das margens que acomodam o que são. Não interessa que venham ventos tempestuosos descompor o sono nos sonhos que eles conseguem comandar. Não interessa que os sobressaltados acordem a meio do sono, único modo de interromper o cenário deletério que veio ao seu regaço por vontade alheia à sua. Os piratas dos sonhos riem-se a rodos quando são testemunhas oculares do desassossego da alvorada dos outros.
Ninguém consegue ter freio nos piratas dos sonhos. Eles deviam rodar os olhos para dentro de si mesmos, espreitar o bolor que os consome, a tremenda fraqueza de quem se certifica ser de uma força sobre-humana. Talvez por isso prefiram a transfiguração das almas que atormentam quando conseguem colonizar os sonhos que não são de quem os sonha, mas de quem mandou que outros por eles sonhassem.
Oxalá houvesse justiça divina. Para devolver, em dobro, o sobressalto de quem apoquenta as águas remansas que deviam ser os sonhos dos outros. E neles deixasse uma perenidade aflitiva.

28.10.14

Do efeito torrencial dos calendários pendentes

Ty Segall, "Feel", in https://www.youtube.com/watch?v=oEskAdhy9WM
Dizem que há um poente irrecusável. É onde se faz tarde, onde o sol se deita e não regressa na consolação das almas. Dizem que esta sucessão de ocasos diários não é infinita. No estirador das certezas, uma há que não consome tempo a ser esboçada: não vamos a caminho da imortalidade.
Temos de aprender com a marcha latente dos calendários que se desprendem das janelas que sobre nós espreitam. Uma encruzilhada de tempos entrecruza-se na maciez do tempo. Às vezes, não damos conta de o tempo passar. Depois vem uma efeméride ecoar nas memórias, destapa-se a poeira que a acamava nas ilustrações para memória futura e reparam-se os esteios que atam a distância temporal entre o acontecimento e o momento em que é tirado do bornal das memórias. Sentimo-nos hipotecados pela bruma efémera do tempo. Do tempo ausente, do tempo vindouro, do tempo que é o tempo único que tem serventia saber existente, o agora que se consome em instantes e afivela o húmus que deixamos.
Outras vezes, não há maneira de o tempo atravessar os oráculos que o aprisionam. É o tempo da procrastinação. Tiramos uma medida do adiamento das coisas, por temor das resoluções necessárias, ou apenas porque somos madraços do tempo futuro. Nas suas medidas todas, passa por nós e só o sentimos como brisa ululante a sussurrar ao pescoço, sobretudo quando temos a medida do tempo gasto em coisa alguma, selando o desperdício em estado puro. Não, nem vale a pena deitar mão ao arrependimento, que não há como deitar ao tempo uma retroativa medida (a não ser aos que desgastam o tempo sensível com o retrovisor que lança âncora ao pretérito, essa perfeita inutilidade).
Somos um corpo que envelhece. Os sinais estão à mão de semear. As árvores centenárias recusam o estertor que delas seja consumição. Dormem de pé. Livram-se das folhas caducas. Mas não é sinal de envelhecimento. É uma astúcia para se reinventarem depois da hibernação. Pode parecer que vêm abaixo; não há maior engano: estão em demanda das forças para se tornarem altivas quando chegar o momento certo.

27.10.14

O que há de comum entre juízes abstinentes e funcionários do fisco que não podem ser insultados?

Grinderman, "No Pussy Blues", in https://www.youtube.com/watch?v=AO_TjpoHOJc
Não sei se é por usarem toga e andarem com o atraso do traje obrigatório, mas sou tomado por elucubrações sobre as tantas semelhanças entre os juízes e os padres. Volta e meia, lá vem um exemplar dos tribunais e outro das sacristias em ponderosa peroração sobre os costumes sociais. Não lhes importa (talvez porque a sua visão é virada para as bainhas dos respetivos seres) que os costumes já não sejam como refletem as suas pessoais maneiras de andar pelo mundo. Quando dissertam sobre hábitos sexuais da espécie, costuma sair asneira colossal.
Há dias foi a vez de um coletivo de juízes do Supremo Tribunal Administrativo (portanto, juízes no topo da carreira). Desvalorizaram os danos que uma cirurgia mal feita provocou no corpo de uma mulher cinquentenária. Com o manhoso argumento de que, aos cinquenta, a uma mulher já não importa o sexo. Ficou-se assim a saber que para além do douto conhecimento das leis e da hermenêutica associada, os preclaros magistrados são catedráticos do sexo. Ou, pelos vistos, não: havia melhor maneira de auto-confessarem a sua vidinha sexual que (aposte o leitor na opção mais válida) ou é desinteressante ou se ausentou para parte incerta (há ainda terceira hipótese: por ser desinteressante, ausentou-se para parte incerta)?
Quase ao mesmo tempo, o governo de que dizem ser um expoente de “neoliberalismo” apostou, uma vez mais, em contrariar quem assim o etiqueta. Na sua sanha de legiferar sobre tudo o que mexa, amassou uma lei que agrava a punição para quem tiver o topete de insultar funcionários das finanças. Confesso que não percebi a coisa: a desigualdade entre funcionários públicos pode ser vertida em forma de lei? Na falta de protesto dos sindicatos que representam os outros estalões do funcionalismo público (reivindicando idêntica solução para os sindicalizados), fica a perplexidade a esvoaçar enquanto o céu nos agracia com o estio a destempo. Já sabemos que o governo foi com uma brutalidade desmedida ao bolso dos contribuintes – noutra medida mesmo típica do liberalismo, como (não) sabem os que põem na boca o estigma do “neoliberalismo” de cada vez que querem esbracejar demónios. Os vidrinhos de cheiro que são os funcionários do fisco são a arma secreta do governo para aumentar o rédito dos impostos. Daí que tenham de ser tratados na palma da mão. Ai de quem os ofender. Está tudo explicado.
Eu tenho uma leitura diferente: os funcionários do fisco também devem ter, como os juízes do Supremo Tribunal Administrativo, uma vida sexual enfadonha (ou inexistente – vá-se lá saber qual dos males é o pior). Para não agravar os padecimentos da alma, que seriam maiores caso tivessem de levar todos os dias com a má educação de sujeitos passivos de impostos mal dispostos com a fatura do fisco, que venha lei dissuadir os pagadores de impostos de ultrajarem os vidrinhos de cheiro que trabalham na arrecadação de impostos.
Só falta encerrar o vértice deste triângulo desamoroso: e o legislador, tão empenhado em fazer leis que são “neoliberais” e, contudo, se afastam do liberalismo como a Gronelândia está distante da Nova Zelândia: também terá uma via sacra sexual?

24.10.14

A culpa do prazer (e outras castrações)

In http://media.uccdn.com/images/1/0/8/img_cuales_son_los_siete_pecados_capitales_20801_orig.jpg
Aos sacerdotes vários (com e sem sotaina) que sobem a um púlpito de onde julgam comportamentos alheios; aos que devem ter íntima existência tomada pela perene apoquentação; aos que não se importam de alvitrar sobre o que não lhes diz respeito e, ainda assim, não sucumbem na vergonha.
Para todos eles: deixem os prazeres alheios à solta. Deixem-nos voar por dentro das asas de quem os transporta, que são aqueles a quem os prazeres interessa, pois a eles revertem nos sentidos. Que se deixem, os Torquemadas risíveis, de erguer o dedo censório, de puxar a corda a argumentos bafientos, talvez de esconder uma reprimida inveja. Deixem os hedonistas em seus floridos campos. A eles os prazeres vários, sem a mácula do pecado ou a insinuação torpe da anormalidade. O que foge da normalidade é haver gente que tem tanto tempo livre (ou uma insignificante existência própria), que trata de atirar a lama da culpa para os que perseguem devido a terem prazeres que, julgam, deviam ser proibidos.
Os prazeres são prazeres. Revelam a grandeza de quem neles se deita. Um desassombro. Fruem-se no império da liberdade que em cada um tem cabimento. Se por acaso alguém se dedica a prazeres que julgamos incompreensíveis, viremos o rosto para o outro lado, ensimesmemos os lados redondos onde encontramos os nossos próprios prazeres, deixando os prazeres dos outros ao seu império volitivo. Os sacerdotes, com ou sem sotaina, que sentenciam sobre prazeres de gente outra deviam ser banidos da palavra (hipótese última da censura). Não dignificam a sua própria liberdade ao cometer um soez atentado à liberdade daqueles em que vertem a voragem dos vómitos que fazem passar por opinião. Mas não é opinião. Ou, em o sendo, guardem-na no obscurantismo dos seus profundos seres, deixem-na aí, gasosa em seu estado. Guardem a culpa para a atirarem para cima de si mesmos, quando encontrarem o chão viscoso em que se consomem as suas particulares apoquentações e delas vicejar uma culpa que nunca é admitida.
Quanto ao demais, deixem o prazer medrar sem culpa. Ou chegará um tempo em que os alvejados pela sua ira censória terão um duplo prazer: aquele sobre o qual reverte a ira dos censores (a culpa do prazer) transfigurada em prazer da culpa. No prazer da transgressão metódica.

23.10.14

O rapaz que queria saber a cor do luar

Colourbox, "The Moon is Blue", in https://www.youtube.com/watch?v=lT2b6wxHIO0
O rapaz sabia que era estrangeiro naquela terra tão distante. Tudo era diferente. O que se falava, o que se comia, a maneira como as pessoas sorriam, a frieza com que falavam umas com as outras, o frio que era mais frio do que alguma vez sentira, a cor do luar.
Entre a constelação de coisas diferentes, o que mais o intrigava era a cor do luar. O céu estava quase sempre coberto de nuvens e roubava o luar só para si. Era uma sensação esquisita. Da terra de onde vinha, o céu noturno destapava-se de embaraços e mostrava a exuberância da lua quando ela subia no firmamento a resplandecer sobre o planeta. Mas ali, eram as nuvens que mandavam. Aliás, já do sol se podia dizer o mesmo: quase sempre estava ausente. Com o andamento do tempo a caminho do equinócio do inverno, a luz emprestada pelo sol encolhia-se, deixando uma pálida claridade de pouca duração a adejar sobre o dia. Mas não era tanto do sol que sentia falta; precisava de contemplar o quadro efervescente que era a irradiação do luar, a lua que ficava, imperatriz, a ungir os lugares todos com a luz branca como só ela sabia fazer.
Uma noite, por fim, o desejo do rapaz estava à mão de semear. As nuvens tinham decidido arrimar a outros lugares. O céu estava nu, preparado para exalar a visita da lua cheia aprazada para aquele dia. O rapaz nem jantou. Subiu a um promontório perto da cidade, porque julgava ficar mais perto do céu onde pontuava a mágica lua. Foi digerindo as diferentes fases da lua à medida que as horas avançavam da noite pela madrugada fora. Nem chegou a sentir o frio glacial que se pusera na noite. Tirou fotografias, muitas fotografias. Queria, fosse como fosse, saber de que cor era o luar.
Tinham-lhe dito que ali a lua tinha uma cor diferente. Confirmou. Tentou anotar uns pensamentos acerca da lua que parecia diferente da que fora dada a conhecer. Não conseguiu se não esboçar umas palavras avulsas, nada que fosse descritivo das tonalidades inesperadas que a lua inteira oferecia. Derrotado pelo sono e pela lua que já descia a caminho do fio do horizonte, exangue como ele, desistiu. Não sabia de que cor era, ao certo, aquela lua tão diferente. Mas isso também não importava. Anotou, mentalmente, diferenças. Oxalá não lhe perguntassem quais eram, pois não sabia o que dizer.

22.10.14

Um estranho

Julia Holter, "Hello Stranger", in https://www.youtube.com/watch?v=dtp-Vl90uDU
Às vezes, é como se o corpo não pertencesse ao ser. E o corpo estranhasse o estranho que nele se entranha.
É madrugada. A noite ainda embebida na ausência de luz. Os olhos abertos nada distinguem. Os olhos estão submersos na penumbra do silêncio. Os dedos tateiam o corpo, só para sentir se o corpo é mesmo corpo – o corpo. É uma impressão estranha. O corpo é sentido, os dedos percorrem-no em toda a sua extensão. Mas, lá por dentro, é como se não houvesse sensações para sentir, como se os archotes tivessem uma luz pífia e tudo estivesse sitiado nas paredes frias de um quarto soturno. O corpo em antinomia com o ser. Um estranho em colonização do corpo. Em duas metades e cada uma em luta com as forças todas para asfixiar a outra.
Os olhos, agora marejados, querem irromper da luz baça que vem das ruas da cidade. Nem as luzes que emprestam luz à cidade e a retiram da penumbra se conseguem ver. Parece um nevoeiro plúmbeo. Os olhos perdem a orientação das coisas, perdem-se numa errância que não é intencional. As mãos apertam-se com a força toda, como se tivessem medo que o corpo se apartasse do ser – daquele ser estranho – e deixassem de ser partes do mesmo todo. Talvez os olhos não estejam abertos. Talvez seja só uma ilusão. E tudo seja a plenitude que sempre julgara. O estranho em mim, não é. Apenas uma paleta de cores desmaiadas ditada pelo caleidoscópio de sentidos que flui com a voracidade dos murmúrios. De onde sobram diversos eu.
Mas a noite demora-se. Dir-se-ia, pelo tempo passado, que era tempo de vir o dia. Os olhos que se consomem na penumbra altiva reveem as estátuas que são o desdobramento dos tempos de outrora. Revisitam-se imagens. Não têm serventia. De lá não encontro aprendizagem alguma. De repente, um pedaço de espuma do mar sobrevoa o extenso areal e vem pousar na maçã do rosto. É uma centelha que ilumina o rosto. Que é o mesmo. 
A noite demorava-se, contudo. Talvez fosse inverno e o estranho, sem contar, tivesse encontrado regaço numa paisagem ártica.

21.10.14

Torcer os números até eles dizerem o que queremos

In http://thumb1.shutterstock.com/display_pic_with_logo/474871/101278054/stock-vector-background-with-numbers-vector-101278054.jpg
Há manipulações para todos os gostos. Umas são grosseiras e quem as comete é vilipendiado. Dizem que não vale fazer batota e a desonestidade da manipulação não é boa medida. Outras são – como dizê-lo? – suaves reinterpretações que fermentam novos números, mais simpáticos como descrição da realidade.
Como se consegue o milagre? Mudam-se as bases de cálculo, adicionam-se novos pressupostos, mete-se na soma o que dantes estava excluído e, no fim, também se está a torcer os números. Só que estas manipulações nem se chamam oficialmente manipulações; são revisões de métodos, metendo numa nova alcáçova o que dantes, por pruridos da moral e por impedimento das leis, estava excluído. Mas não se pode dizer que é batota, porque a manipulação (que oficialmente não o é) veio ungida com a bênção dos organismos oficiais que fazem estatísticas.
Vem isto a propósito de a União Europeia ter concluído que devia incluir uma variável aleatória no cálculo do PIB que metesse na riqueza dos países uma estimativa dos efeitos económicos da prostituição e da droga. E, de repente, o PIB aumentou 2,5 por cento. Não é o milagre das rosas, que as coisas tão imorais e ilegais que passaram a contar para as contas são tudo menos rosas; mas é um milagre que fez crescer o tamanho da economia. E, de caminho, consegue (por artes da ilusão estatística) diminuir o peso da dívida pública e do défice orçamental nas contas dos Estados. Que vão a caminho de respeitar os açaimes que a União Europeia colocou no défice e na dívida.
Os tráficos (de carne branca e de substâncias que levam os consumidores para dimensões cósmicas) mexem com muito dinheiro. Já toda a gente sabia. Estando essas atividades fora da lei e dos costumes, todo esse dinheiro aquece a economia subterrânea. A economia que não conta para as contas. Agora, isso mudou. Só faltou à notícia explicar que contas usaram os estatísticos de serviço para concluírem que as atividades que passam debaixo da mesa significam mais 2,5 por cento na economia.
À falta de dados, ficam as consequências. Primeiro, o exercício é paradoxal. Se as meninas que vendem prazeres carnais e as drogas de diverso calibre são banidas pelos costumes ao ponto de estarem em fora da lei, como podem contar para as contas que calculam o PIB? Segundo, pode ser que este seja o primeiro passo para a legalização do que não devia ser ilegal.

20.10.14

A folia que inebria


The Stranglers, "La Folie", in https://www.youtube.com/watch?v=g9cSa6EjVRA
Quem diz que a vida é uma loucura? Loucos são os que por ela passam sob o jugo de uma batuta que os mantém ordeiros. Loucos são os que vão pelos prados verdejantes e atuam como rebanhos – ordeiros. Loucos são os que hipotecam a vontade. São loucos sem lucidez, sem préstimo algum. Nós somos de uma loucura diferente. Atiremo-nos de cabeça no abismo. Vamos pelos mistérios insondáveis, descobrindo o que houver por descobrir, nem que seja o nada depois de um beco à saída da encruzilhada. Não vamos lamber as feridas. Não vamos deitar um espelho sobre o que já foi, que é pertença do tempo das sepulturas. Vamos, pelo contrário, estilhaçar os espelhos que olham por detrás das costas. Vamos abrir as rolhas das garrafas e deitemo-nos numa embriaguez sem peias. Não, não é fazer de conta que passamos pelo mundo como se ele, pungente, fosse um lugar pouco recomendável e quiséssemos nele andar anestesiados. Vamos aos elementos que purificam as sensações. Vamos saber como se extrai o tutano da vida. Não interessa com que indumentária. Não interessa o penteado, ou se o cabelo está desalinhado. Não interessa se há palavras ditas que não fazem sentido, que se foram ditas é porque nelas se encerrava um sentido qualquer. Corremos contra o tempo, para vencermos o pleito. Olhamos pela embocadura do sol e encontramos uns raios que só aos predestinados é dado revelar. Damos as mãos à folia que nos inebria. Damos as mãos aos instantes que não se consomem na vã promessa de um nada que sobeja do amanhã, pois somos nós que damos ordem para os instantes se consumirem na nossa pele. E então, já de alma cheia, colorimos o pensamento com as cores garridas que houver à solta. Vamos pelos precipícios, pois queremos ser senadores das sensações fortes, queremos beber num cálice o expoente máximo da vida que transita em velocidade excessiva, queremos os instantes emoldurados nas palmas das mãos. O sono pode ser pouco, que os sonhos podem demorar. E depois, quando tivermos a certeza que a alma está cheia, depois de termos passado todos os testes da lúcida loucura, se nos parecer, construímos com as nossas mãos o trono que de nós faz reis.

17.10.14

Ladrões low cost

In http://static1.custojusto.pt/mi/full/8500577280-motalli-bolonha-50-cm3.jpg
Do rodapé de uma notícia: ladrões que foram apanhados porque faziam delinquência em motoreta de cinquenta centímetros cúbicos.
O amadorismo chega a ser enternecedor. Ou isso, ou a indigência em que se embebem os néscios que se julgam super-heróis do gamanço. Devem ter, ainda assim, feito pecúlio; pois da notícia também constava que a zona tinha sido varrida por “assaltos em série”. Mas um dia, a função correu mal. Sobrestimando capacidades, a adversidade da luz diurna para a empreitada e a probabilidade de haver muita gente acordada em durante o dia, os ladrões já regressavam de outro assalto quando foram interceptados por populares (na linguagem jornalística, os populares contrastam com as forças da segurança. Estão para estas como os civis para a tropa de quartel). Não consumaram o roubo porque faltava potência à motoreta. Foram atraiçoados pelo veículo, não conseguiram fugir dos arredores do crime.
Os aprendizes de criminoso não sabiam nada de tática do gamanço. É preciso um plano de contingência. Sobretudo na hora da fuga, não vá dar-se o caso de “testemunhas oculares” (outro preciosismo semântico dos plumitivos) deitarem o olho na mão sagaz que vai à propriedade alheia e desatem a correr atrás dos meliantes, frustrando a ação. Poderão alguns, os habituais que se comiseram com as infaustas condições em que o abominável capitalismo mergulha os desvalidos, certificar que a culpa não é dos atrapalhados gatunos. É da crise, que põe tanta gente à míngua, abandonada a um estado de necessidade que a faz ser, em desespero, gente ladra para prover a autossubsistência.
Não sabemos se assim foi. Podia ser gatunagem gratuita, a preguiça de trabalhar substituída pelo gozo de enriquecer ao ser parasita do suor dos outros. O que é um amadorismo cinzelado a penas de alcatrão. Nem todos têm a destreza de Bonnie e Clyde. Como em tudo na vida, só um escol é que se safa. Os outros, nem conseguem irromper na espuma da mediocridade.
A televisão decidiu chamar-lhes “ladrões low cost”. (Ó criativa semântica!)

16.10.14

Uma dezena

Ornatos Violeta, "Capitão Romance" (Coliseu dos Recreios), in https://www.youtube.com/watch?v=eBN-ruyacSs&list=PLxlSrH9vXgPZDVNN0jPdfsYR5yBN9njQ8
Duas mãos cheias de aniversários. Eu bem me queria desenganar, mas o calendário que arranca o tempo ao tempo tratou de o confirmar: tu estás crescida. Tão crescida que agora não vais deixar os dois dígitos como expressão da idade. E eu, teu pai, embevecido por te ver crescer. Vou-te confessar uma coisa: eu cresço contigo, cresço à medida que acompanho o teu crescimento.
Podia ir ao tempo de outrora em busca de memórias do que já foste. Mas não é preciso. Estar ao teu lado é a melhor impressão digital que podemos ter um do outro. Não precisamos de lembrar o tempo que já foi. Precisamos de caminhar juntos no tempo que nos é dado a saborear. Isso é que importa. É quando um pai é o chão que suporta o andar da filha, um chão sólido e liso que deixa a filha caminhar com a serenidade de quem continua enfeitiçada pela inocência e não sabe que há sobressaltos que podem atraiçoar o caminho que se faz. A seu tempo hás de lá chegar; é próprio do tempo que a seu tempo terá lugar.
Até lá, vou contigo na aprendizagem da vida, porque não nascemos na posse dos domínios do mundo nem todas as coisas em que ele se deita nos são dadas a perceber. É por isso que digo que continuas a precisar de colo. Não interessa que estejas quase da minha altura: o colo é-te sempre devido. Para sarar as cicatrizes que o tempo irá abrir, pois a ninguém é dado escapar às cicatrizes do acaso; para te dar o que de mim for útil aprenderes; para sermos atores na ternura que, oxalá, se demore em muito tempo; para continuarmos a ser cúmplices na música de que os dois gostamos, ou para te contar as histórias inventadas que já não conto ao deitar. E digo-te: quero que saibas que estou onde for preciso para estar ao teu lado. Mesmo se, algumas dezenas de aniversários depois, porventura encontrares um lugar que seja distante, nem assim haverá distância tanta que consiga tornar pálidos os laços filiais que são os nossos.
Uma dezena de anos são mais de três mil e quinhentos dias de vida. Nas dezenas que vierem pela frente, que sejamos caixa-forte um do outro. Para sabermos que há um ombro onde repousar as lágrimas, ou um abraço enfeitado a mil beijos que celebra as felicidades que em ti vierem fundear. Às dezenas que estiverem para vir, bebo um vinho adocicado pela felicidade que semeaste em mim. É para ti a música ali em cima.

15.10.14

Pensamento em alta velocidade


In http://1hdwallpapers.com/wallpapers/high_speed_tunnel.jpg
Desafia os imponderáveis que achares no caminho. Alinhava as fronteiras da impossibilidade, empurra-as sempre um bocado mais à frente. Desembainha a espada contra os espartanos guerreiros que prometem a preguiça. Olha as paisagens no conjunto, não te detenhas nos pormenores que embaciam o estertor do tempo. Coloca o pensamento em modo de fervura. Deixa-o em ebulição constante. Mesmo a dormir, que há ideias que proveem de sonhos, ou baias que são desfeitas à custa de tanto combateres pesadelos até que eles deixem de ser visitação do sono. Acima de tudo, não te intimides, não deixes que o pensamento se coalhe aos pés de supostos imperadores que esgrimem o que julgam ser uma superioridade intelectual. Apanha-os na curva em falso e devolve-lhes humildade, que mal não lhes faz. Abraça as ideias todas, mesmo que estejas embebido numa tempestade de ideias que fruem no aluvião em que o pensamento medrou. Não desperdices nenhuma ideia à partida. Depura-as com o tempo, com a densidade do pensamento que se deita sobre o pensamento que vem de trás. Interroga as ideias. Sê o primeiro crítico das ideias que, a certo passo, julgas à prova de bala. É que não há ideias à prova de bala. Refaz os alicerces, revê os caminhos por onde prossegue o raciocínio, interroga sem cessar, não te contentes com as respostas que sobram depois da embriaguez das perguntas. Não há pensamento definitivo. É sempre work in progress. As mundanas tentações congelam o pensamento dentro de um castelo exíguo, em ruínas. Não queiras ser refém da estreiteza da alma. A grandeza maior é o sobressalto contínuo do pensamento que se enamora da rebeldia. A grandeza maior é a importunação das ideias com cores sempre iguais, sem palavras tecidas em melodias diferentes, sem o fulgor de achar caminhos desconhecidos mercê das incómodas paredes de onde se solta o musgo da sabedoria. Mas nota: a sabedoria é tão provisória como o pensamento.

14.10.14

Males desacertados

Slowblow, "I Know You Can Smile", in https://www.youtube.com/watch?v=dhOY11G78ZE
Enforcara os males de outrora. Com um nó górdio que foi, desta vez, asfixia para os desacertos que tanto teimaram. Não sabia como haveria de lidar com o tempo vindouro. Estava tão habituado à comiseração. O melhor panegírico era os outros lavarem-se em lágrimas por causa das contrariedades que eram tão habituais. Nem maldizia o azar, não fosse o azar (ó superstição) fermentar mais azar em cima do azar que vinha como aura em cima dele.
Agora, as alvoradas já não eram plúmbeas. Nem o tempo parecia uma eternidade, arrastando-se nas ocasiões angustiantes, quase não se demorando nas poucas vezes em que havia pétalas perfumadas a dele extrair. Agora, que havia uma luminosidade cintilante a adejar, até quando a noite era uma penumbra implacável, era como se os dados jogados em cima da mesa tivessem virado a sorte (outra vez a superstição). Acordar pela manhã não era pungente, o pensamento ansioso por o tempo cortar a eito por um atalho e que depressa se fizesse a hora do recolher. Viver era uma experiência magnífica. Todos os dias havia alguma coisa para aprender. Dos livros, das pessoas à volta, das árvores, das paisagens e dos monumentos (sobretudo dos que, mesmo a dois palmos da lucidez, andaram contumazes), das coisas por mais simples que fossem.
Agora, tudo era diferente. Olhava para trás, das poucas vezes que ia em contramão com a nostalgia (pois desse tempo não havia recompensas vertidas em cálice algum), e não se arrependia de não se ter arrependido. O pretérito está enfeitado com as fitas, ora sombrias, ora altivas, que emolduram o tempo nos retratos guardados na memória. Não tem préstimo. Mas também não há honraria em desfazer o outrora como se dele não houvesse notícia a guardar. Assobiava as melodias que vinham com o ecoar dos ponteiros do relógio, enquanto entreabria as janelas todas, à medida das cortinas desfraldadas à brisa que vinha para dentro das janelas, e açambarcava o caleidoscópio de odores que se anunciavam.
O júbilo deixara de ser uma distante miragem, ou uma promessa que se adiava na eternidade do tempo apenas prometido. Foi quando domou as circunstâncias que julgava suas tutoras no corcel do tempo. Agora, as rédeas eram suas.

13.10.14

Os gatos poltrões

In http://www.riograndedonorte.net/wp-content/uploads/2013/02/gatos-de-rua.jpg
De há uma semanas a esta parte, consumia a pausa matinal a observar os gatos nos terraços das redondezas. Saía à varanda com a chávena de café, não importava que estivesse de chuva ou que o sol ainda tisnasse a pele. Às vezes, perdia a noção do tempo e as colegas chamavam-na de regresso ao trabalho. Era como se estivesse a escrever um romance mental e os gatos vadios que encontravam pouso no terraço à volta fossem personagens do enredo.
Catalogou os gatos. Eram oito. Comiam no canto de um prédio, onde uma velhinha, de certeza embebida em solidão, a aplacava através do convívio com os gatos. Falava com eles. E eles aproximavam-se de cauda em riste, o rosto emproado, dir-se-ia que extasiados com o odor que vinha de dentro dos sacos onde a velhinha guardava o repasto. Comiam até se empanturrarem. Depois, um ou outro ensaiava uma peleja lúdica, mordiscavam o pescoço, alçavam a mão para esbofetearem o rival. Lavavam-se demoradamente, humedecendo uma das mãos que era atirada contra os bigodes que ainda albergavam vestígios da comida. O asseio só findava quando notassem que nos bigodes já não havia sujidade.
Coçavam as orelhas. PorventuraCoçadadecomida.estavam m . ali fcidae de gatos que exemplifica os antmetem contra os comportamentos sedentefeiçndo o sono. ali fCoçaC as pulgas nidificavam nos gatos. E depois deitavam-se ao sol (se o dia fosse soalheiro) ou refugiavam-se no alpendre (se estivesse chuva), à espera do sono. Não havia insónias. Dobravam-se sobre o dorso, encaixando a cabeça junto dos pés e aterravam num sono demorado. Alguns dos gatos, em havendo dias mais frios, recostavam-se uns nos outros à procura do calor que contagiavam reciprocamente. E dormiam. Horas a fio. Não os importunavam os aviões que têm rota de aterragem por cima dos prédios e já voam baixo, ruidosamente. Não se incomodavam com as ambulâncias e os carros da polícia que anunciam, com estridência, as sirenes de uma urgência qualquer. Não queriam saber das donas de casa que vêm à varanda estender roupa lavada, ou despejar as migalhas que estavam na toalha embrulhada que veio de uma refeição anterior. 
Ao fim do dia, quando ela voltava à varanda para arejar do ar pesado de um dia de trabalho, retomava a catalogação dos gatos. Não faltava um. Ainda dormiam todos. Alguns, na mesma posição em que estavam por volta dos meados da manhã. Outros mudavam de pouso, mas mantinham-se leais ao sono. Estavam gordos. Pudera! Deixá-los ser poltrões e alegres como acharam a alegria naquele terraço.

10.10.14

Vamos esquecer a história que não convém?

In http://www.conservapedia.com/images/e/ee/Stalin-140508_27880t.jpg
Façamos melhor: vamos apagar a história que não convém, aquela de que nos envergonhamos. Porque, ao apagá-la dos registos da memória, conseguimos o milagre de fazer crer que essa história não aconteceu, que foi apenas um pesadelo coletivo. É como se fosse possível ir aos fundilhos do tempo, andar com o relógio para trás e passar uma vassoura pelos protagonistas que nos desagradam. Não interessa que desse modo sejamos juízes impondo os nosso juízos aos outros; assim como assim, somos de uma estatura intelectual superior e o povo precisa de ser guiado como deve ser.
A extrema-esquerda não aprende com as armadilhas que inventou para si mesma. O estalinismo, com as depurações cirúrgicas que iam ao ponto de apagar gente (que passou a ser) incómoda das fotografias, não se despega da espuma do tempo. O mais recente aconteceu no parlamento, quando os deputados das seitas aí filiadas queriam impedir uma exposição de bustos de presidentes da república porque estavam lá retratados os que exerceram a função durante o (que insistem em chamar) fascismo. Ensinemos aos meninos que andam pelos bancos da escola a aprender a história da grandiosa pátria que teve foros de coisa exemplar nos tempos idos: quando nos envergonhamos de episódios que ficaram nos anais da história, viramos a cara para o lado de lá, fechamos os olhos, cultivamos a ignorância, fazemos de conta que aquilo, por tão vergonhoso, não se passou. Tendo origem na presciente e muito tolerante extrema-esquerda, ai de quem chamar a isto censura.
Era como se daqui para a frente cada indivíduo pudesse banir do registo da memória os acontecimentos que molharam a existência com o fracasso, as odisseias de que não se tem orgulho, e nem sequer houvesse lugar ao arrependimento (que, é certo, é perda de tempo). Refazíamos a história nossa como se fosse possível extinguir os episódios que não deviam ter acontecido se o tempo futuro pudesse fazer uma aliança com os acontecimentos passados. Lamentavelmente, os tempos diferentes não têm pontes que os unam. Pertencem, cada qual, ao tempo de que vêm. Ir lá atrás para apagar o que não interessa recordar é mau augúrio: de que somos perfeitos (e ainda bem que não somos) e de que somos engenheiros que cinzelam cirurgicamente o passado em que fomos.
A extrema-esquerda não aprende a deixar de dar tiros nos pés. Pois recordar os lamentáveis tempos da ditadura não é o melhor seguro para que esses tempos não voltem com o regresso da maré? E recordar esses tempos não é a melhor prova de vida para a extrema-esquerda? Eu cá farei o que estiver ao meu alcance para não esquecer que a extrema-esquerda existiu e continua a existir. Seria demencial fazer de conta que não conta, a extrema-esquerda, para as contas que interessam.