1.12.14

As suíças de deus

Sugarcubes, "Deus", in https://www.youtube.com/watch?v=fq2dWTBVZD4
Deus, afinal, tem rosto. Um rosto. Velho, como mandam as lendas. Deixou de ser uma entidade imaterial, uma ideia, o vértice cintilante para onde convergem as fés. O velho deus tem o rosto enrugado, olhos cansados em cima de olheiras (deve ser das desilusões que o rebanho provoca), cabelo branco e esparso, uma barba rala que se debruça em cima do queixo pontiagudo, e umas fartas suíças que nascem junto aos ouvidos e desaguam na embocadura do maxilar. Trazia calças à boca de sino e uma túnica que terá sido comprada numa feira de marroquinos.
Deus não dorme: a vigilância constante e a traição dos fusos horários, sempre com almas acordadas e prontas a irem por caminhos ínvios, impedem o sono. Não lhe faz falta, o sono. Do seu púlpito, deitando mão aos poderes sobre-humanos que fariam corar os super-heróis de banda desenhada, vigia as almas frágeis. Mas não acreditem quando lhe apregoam a omnipresença: os olhos são só dois e ele não tem campo de visão como as galinhas. Não pode, é deificamente impossível, deitar os olhos nos tantos biliões de almas que povoam o planeta que ele vigia.
Desenganem-se os que julgam que todas as ações (as boas e as más) são comandadas à distância pelo altíssimo. Tal como não tem olhos que cheguem para pastorear todas as ovelhas do rebanho, não consegue a telepatia com todos os biliões que habitam a Terra. A seleção é aleatória. Chegam uns segundos para captar os sinais magnéticos que vêm do planeta debaixo dos seus pés. Os sinais magnéticos são filtrados pelas fartas suíças esbranquiçadas. Quando pode, evita catástrofes. Leva as almas ao arrependimento antes da ação. Na maior parte das vezes, não consegue domar os maus instintos que se convertem em maldade. Nem com o crescimento das suíças, que permitiram maior filtragem. Precisava de ter umas suíças maiores que a sua dimensão para aperfeiçoar o cultivo dos bons modos nas ovelhas que teimam em tresmalhar.
Quando se cansa de adestrar as almas sem remédio, mete-se por dentro de gente que transforma em escritores. Inculca-lhes o dom da escrita e a criatividade da trama. A atestar alguns que publicam literatura, dir-se-ia que deus se orienta por uma bússola estética de duvidoso gosto.

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