22.1.16

A pele em mim

The Stranglers, “Skin Deep”, in https://www.youtube.com/watch?v=j5UfE2BbYSQ
Debulhar as cicatrizes, deixando de fora o mais belo que vem de dentro. Não podia ser empreitada inglória. Afinal, os sobressaltos havidos teriam alguma função ditada: emparelhar os azimutes que subiam ao pedestal da atenção, para decantar as impurezas que achassem refúgio por dentro da pele. Admitia, contudo, que o corpo não é isento de impurezas. A perfeição é uma contrafação inventada por personagens fátuas que se contentam com pouco.
A pele teimava em não enrugar. Já não era de idades jovens, quando a pele se alisa nas fotografias que, mais tarde, revivem os anos assombrosos, quando o tempo era apenas vertiginoso. As rugas pareciam adiadas para segundas núpcias, talvez querendo anunciar que a velhice seria tardia naquele corpo. Sentia a maciez da pele. Não que isso importasse por aí além: tal como as impurezas não podem ser abatidas por um método perfecionista, o tempo, o incorrigível tempo, trataria do enrugar da pele. E como, por todos os lados, os insaciáveis curadores do “bem pensar” professavam aquela fé moderna, despojada de materialismos vãos, que cultiva as virtudes da alma admirável, era difícil ficar insensível ao credo. Ora, a alma podia naturalmente não quadrar com os predicados de alisamento da pele que demorava em envelhecer. Mas, no fundo, eram detalhes sem importância (ou não fossem detalhes).
Por cima de todos os lugares-comuns que os gurus do pensamento ligeiro debitam, continuava a prestar atenção às porosidades que estavam nos interstícios da pele. Sabia que por elas emergia a alma espontânea. E que elas desfolhavam os podres que a alma queria bolçar, porque a alma já não tolerava conviver com esses apodrecimentos. A pele, de tão lisa e macia, parecia fazer a diurese das impurezas que viviam aprisionadas na alma e que tinham de ser excretadas. Elas evaporavam-se nos poros, que tinham a função de termómetro de virtudes.
Por isso, afigurava-se-lhe congruente que os lugares-comuns desprezassem a superficialidade da pele. Pois não somos adestrados para aprovar a mais substancial gramática da alma, a profundidade de onde se extraem os óleos virtuosos que há em nós? Se calhar, estava tudo errado. E o que contava era mesmo a maciez da pele, espelho lunar da alma virada do avesso.

Sem comentários: