Spoon, “I Turn My Camera On”,
in https://www.youtube.com/watch?v=ro95Ns58qSE
As entranhas viradas do avesso, atiradas cá para fora. Um
desnudamento total. O imperativo de tirar o véu a todos os segredos de que era
tutor único. Todos. Até os mais sombrios, aqueles que causariam embraço ao
serem mostrados sem peias. Abrir o peito e deixar tudo vir à tona. E depois
indagar esse todo fervente, para saber o que fazer com ele.
Interiores convulsões. Precisava de encontrar os subsídios
da diferença de si através das fragilidades e das vergonhas, do questionamento das
virtudes. Que se danassem as públicas censuras, os que deixassem de lhe dirigir
a palavra, os curadores da comiseração que propusessem generosa ajuda em jeito
de psicanálise ou coisa parecida. Que se danasse o resto. Sabia que tinha de
pagar dispendiosa fatura. De certeza. Passaria a figurar como deceção para um
punhado de gente. Passaria a ser figura proscrita para outros tantos. Mas ele
sabia que o que mais importava não era o retrato de si que os outros tiravam na
sua pessoal câmara de ressonância; o que mais importava, de uma vez por todas,
era não sentir o pulsar doloroso das veias por dentro de si. Não queria que das
consumições interiores medrasse o medo de si próprio.
Foi um processo demorado. Tormentoso e difícil. Muitas
noites de insónia, muitos dias que pareciam madraços, à falta de produtivas
tarefas dele esperadas, dias esses dedicados à catarse. Não interessavam as
curvas sinuosas, os mares tempestuosos, as palavras malditas, o rememorar de atos
contristados, os panos untuosos que caíram no corpo, todas as mortificações que
assentaram na pele ao longo do processo. Fazia parte do prisma dilacerado, mas
necessário, de todo o processo. Foi como sair de dentro de si para se contemplar
do exterior. Atirando tudo cá para fora, num inventário demorado e complexo. Um
processo violento. Oxalá tivesse valimento esta carestia da alma.
Ao cabo da demanda, tinha um perfume de purificação a
sondar o corpo. A leveza do corpo como nunca lhe fora dado a provar. Amanhecia como
se não houvesse nevoeiros malquistos a embaciar a lucidez. As palavras
agressoras dos outros eram devolvidas pela fortaleza que o protegia das intempéries
exteriores a si. Agora protegia-se de si mesmo. Daquele eu timorato e obstinado
que teimava em atirar o eu reprimido para as enxovias subterrâneas e escuras. De
dentro para fora, a emergência de um novo eu.
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