14.1.16

Pólvora seca

Anonhi ft. Antony Hegarty “Four Degrees”, in https://www.youtube.com/watch?v=Fi0q0O4V5Qs
(Como pôr um desesperançado a falar com um bêbado nas virtudes do mundo)
Pessimista – Eu vejo os espaços negros que voam nas nuvens.
Otimista – Eu olho para o céu atrás das nuvens, para o lustro fervido pelo céu sem nuvens.
Pessimista – E como sabes que as nuvens não vão colonizar o céu aberto?
Otimista – Não sei. Nem interessa. Admiro a luminosidade enquanto há.
Pessimista – Com pouco te contentas...
Otimista – Poderia dizer o contrário de ti: com muito te apoquentas.
Pessimista – Não é isso. Acordo todos os dias e sinto que estou cercado. Que há sombras que adejam sobre mim sem, contudo, as conseguir ver.
Otimista – Pois as alvoradas são a renovação de tudo, a frescura que vem com elas atira-me de frente contra o dia. Tenho tudo a ganhar.
Pessimista – E nunca te aconteceu desconfiar, que não sabes explicar a suspeita que o dia por diante vai ser madrasto?
Otimista – À partida, desde os alvores do dia, não. Pode haver um dia pior, quando o cais fica tingido pela penumbra que exclui as cores insaciáveis. Mas depois, há o dia que vem depois.
Pessimista – Às vezes, sou tomado por uma espiral. As coisas más vêm umas atrás das outras. Parece que são engodo para as que, piores ainda, estão para chegar.
Otimista – Não admites que do teu pensamento podem gravitar os lugares maus que não desejas habitar?
Pessimista – Por acaso insinuas que apascento as nuvens plúmbeas que se atravessam comigo?
Otimista – Não. Apenas desafio para que procures uma catarse, que te situes perante os sobressaltos que levam anos de vida. Talvez um punhado de interrogações, daquelas que meneiam os alicerces, seja preciso.
Pessimista – Faço constantemente esse exercício.
Otimista – Se calhar não é suficiente. Ou o método está errado.
Pessimista – E tu, não te cansas da visão deslumbrante de que te ufanas? Não te cansas da perene satisfação de ti para com o mundo e vice-versa?
Otimista – Invejas-me?
Pessimista – Podes defender a tua dama dessa forma. Responde às minhas perguntas!
Otimista – Os meus pergaminhos não te chegam? Não te chega que não me arraste em prantos, que não seja visita assídua de peritos da alma, que não esbarre constantemente em muros das lamentações?
Pessimista – Continuas a desconversar. Sem responder às perguntas. Os teus pergaminhos, eu lá sei se não são apenas um ardil, uma muralha artificial para esconder do exterior um eu mais profundo que não admites ser.
Otimista – Podes continuar a empurrar os teus males para cima de mim. Esperas que me desloque para a tua angústia, a tua melancolia?
Pessimista – Longe de mim! Tu estás onde dizes pertencer. Eu não quero o mal de ninguém, sobretudo se vier por intermédio das minhas arreliações.
Otimista – Então, não te entendo.
Pessimista – Só queria perceber se não te sentes assoberbado por angústias. É que te vejo perenemente feliz – e eu não acredito que esse seja (ou possa ser) o estado perene de ninguém.
Otimista – Diz-me: de que serve mostrar que estou importunado por uma arreliação?
Pessimista – Escondes-te nas tuas próprias sombras, portanto.
Otimista – E daí?

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