Tame Impala, “The Less I
Know the Better”, in https://www.youtube.com/watch?v=sBzrzS1Ag_g
Não está bem a análise quando ela anda desta maneira: dizermos
que encontramos um cromo por a personagem ser uma aberração, ou por navegar
numa extravagância qualquer (como se os extravagantes merecessem o degredo), ou
por ser alguém que, de tão enfadonho, é credor de distância (e higiénica). Eu
digo que está mal. A alegoria peca por excesso.
Vamos lá atrás. Quando, em miúdos, colecionávamos cromos
e os colávamos nas cadernetas feitas à medida. Havia cromos repetidos. Foi quando
começamos a perceber os rudimentos da economia capitalista. A lei da oferta e
da procura. E o princípio da escassez dos recursos – e de como os mais valiosos
cromos estavam em falta nas páginas da caderneta e teimavam em não sair, por
mais que continuássemos a comprar carteiras e carteiras de cromos. Para além
dos cromos raros, havia um pouco de tudo: os que admirávamos e tratávamos com
zelo; os que nos eram quase anónimos, ou pelo menos indiferentes (a maioria);
os que tinham nomes impronunciáveis, o que alimentava jogos florais em redor
desses nomes; os que tinham carantonha feia, assustadora, e que pertenciam ao
escol dos cromos de que nos ríamos (sem sabermos que, tempo depois, escarnecer
da feiura é politicamente incorreto); e uns quantos, alcandorados ao lugar de
quase pequenos ódios de estimação, a quem atirávamos, depreciativamente, o vitupério
de “cromos”. Talvez venha daí a semântica do cromo como alguém de quem se
troça.
Regressemos do passado: considerando a descrição da
constelação diversa dos cromos de uma caderneta, não tem lógica chamar “cromo”
a um ser desprezável, ou a um ser apenas risível, ou a alguém que julgamos
tresloucado por ser excêntrico. Esses espécimes são uma minoria na vasta
paisagem de pessoas que andam à volta – dos conhecidos, ou dos anónimos em que
esbarramos na rua, no cinema, num concerto, num restaurante.
Há uma expressão idiomática mais acertada do que “cromo”:
é “dois de paus”. Descontando a discriminação do naipe (não se percebe porque
os “paus” valem menos do que outros naipes, ao ponto de serem desta maneira menosprezados),
um dois sempre é um dois: a carta menos valiosa do baralho. Se calhar, é a isto
que nos referimos quando mandamos a antonomásia de “cromo” a alguém.
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